Não caiu, não deu com a cara numa parede que não era suposto existir, nem em água que pode cortar como vidro, simplesmente apareceu sentada à mesa de uma família que estava a jantar.
−Passa-me a salada, se faz favor.− Pediu a menina que estava ao lado da Rapariga; além dela também havia um menino, que estava a fazer desenhos no ar com a massa.
A mãe passou-lhe a taça da salada que estava na bancada e voltou à pia para continuar a lavar os pratos usados no almoço.
−Há morangos?− Questionou o homem de fato e gravata à esposa que aparentemente já não era digna desse nome.
A mulher mais uma vez parou de lavar os pratos e foi ao frigorífico ver se havia morangos.
−Não.− Respondeu ela, logo voltando a focar-se na tarefa anterior.
O homem levantou-se calmamente indo em direção à porta; entre ele e esta estava a mãe a lavar os pratos. Quando passou pela mulher esta virou-se com o prato na mão e partiu-o na cabeça do engravatado, que levou com outros pratos até desmaiar.
O menino parou de brincar com a comida e foi para o quarto, já a menina mastigou o que ainda tinha na boca antes e depois retirou-se da cozinha; a Rapariga seguiu o exemplo deles.
Foram todos para um quarto escondido ao fundo de um corredor estreito e escuro. A divisão tinha uma mobília bastante peculiar: pedaços de madeira espalhados pelo chão decorados com uma camada cinzenta de pó, cantos das paredes embelezados com enormes teias de aranha, janelas recheadas com cortinas de cartão, etc.
−Meus queridos, venham cá! Vocês sabem muito bem que eu só fico um bocadinho chateada com o vosso pai às vezes, mas já passou!−Parecia descontraída e parecia ouvir-se o som de uma faca a deslizar por uma parede ao longe.
O menino olhou para a menina que olhou para o seu relógio e de seguida voltou-se para o irmão abanando a cabeça.
A Rapariga colocou o seu ouvido contra a porta. Não ouviu nada... esperem... ouviu sim! Ouviu os passos da mãe a irem para cada vez mais longe, ouviu o suspiro dela ao sentar-se na cadeira da cozinha e ainda conseguia ouvir aquele nem tão amado violino.
O menino e a menina encostaram-se a paredes opostas. O menino fazia riscos no chão prateado e a menina ficava a olhar fixamente para o relógio que tinha no pulso até o braço se cansar e até ela voltar a ficar obcecada com as horas.
Amanheceu. O menino parou de desenhar os seus riscos e a menina finalmente baixou o braço; olharam um para o outro e acenaram. A Rapariga sai do seu transe e também do seu lugar encostada à porta. A menina abriu-a devagar de forma a não fazer barulho, no entanto ela e o irmão saíram abruptamente sem se preocupar com o barulho que antes a menina parecia querer guardar numa garrafa mágica que o transformasse em silêncio absoluto. A Rapariga permaneceu quieta, ouvindo os passos despreocupados dos irmãos seguidos pelo som de cordas a roçar na roupa deles e na madeira das cadeiras da cozinha.
O menino teve a sua cabeça perto e de seguida longe da parede varias vezes; ele não berrava, mas mesmo de longe a Rapariga conseguia ouvir o seu sofrimento lento, pesaroso e recheado a sangue o qual estava mais presente na própria parede do que no menino; afinal paredes precisam de sangue, meninos não.
Depois foi a vez da menina. Ela sequer chorou, sequer murmurou, sequer piscou, sequer respirou. Deixou-se morrer como nunca estivesse estado viva, tal e qual ao pai e ao irmão.
A Rapariga foi para a cozinha. A mãe estava a comer sopa e quando a viu apenas ergueu os olhos e continuou a comer. Enquanto isso observou o corpo do homem, aquele quadro ensanguentado de moldura feito a partir de bocados de pratos. Viu também o menino encostado à parede; uma pintura espantosa, com o vermelho em destaque e uma ilusão muito realista de profundidade em certas partes do crânio, o que desculpava a falta de moldura. Por fim viu a menina, que estava toda encarnada, com parte dos ossos e todos os músculos à mostra sem sequer um pedacinho de pele a tapar-lhe o corpo; este, no entanto, já tinha moldura: um círculo oval de pele que quase parecia protegê-la. Completou lindamente a obra.
O barulho da colher a cair no prato anunciou o início de uma conversa entre os olhos da Rapariga e da mãe.
−Nós duas sabemos que és a próxima.− Disse a mulher.
−Se achasse que sabíamos não o diria.
−Sim, mas às vezes seguir um guião imaginário que nunca decorei é divertido.− Ela levantou-se da cadeira e encostou-se a um canto da mesa próximo ao local em que a Rapariga se encontrava.
−Não me parece que goste de atuar.− Respondeu a Rapariga; os seus olhos pareciam de vidro mas não estavam vidrados em nada, nem na mulher.
−Adoro, mas canso-me facilmente.− Realmente é uma grande novidade para todos.
−Gosto do seu guião.
−Muito obrigada.
E voou-lhe um punho para a cara, forçando a Rapariga a entrar tanto dentro da portas das linhas largas e todas retas tirando a circular como em mais um dos quadros daquela artista.

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A Rapariga das Portas Pintadas
FantasyA Rapariga sempre esteve no escuro. Sentada. De joelhos ao peito. No escuro. Sempre foi assim. Até que o sempre tornou-se o nunca e as luzes acenderam-se. Depois, anda pelo corredor até deparar-se com linhas em cima de linhas que formavam desenhos...