Não iniciarei esta prosa com uma saudação, pois é muita breguice de alguém chegar cheio de pompa e circunstância numa fala introdutória aos leitores. Muitos deles pulam a parte de conveniências e vão direto saber sobre o que o autor fala ou pensa. Enfim, esqueçam este singelo compromisso de apresentação aqui. Se o mísero jovenzinho estivesse no comando agora, provavelmente me faria apagar estas palavras sem educação. Ele que se dane e vá pro raio que o parta. Sou apenas um heterônimo (que se dane o poeta favorito dele também, ora), então vou escrever o que me der na telha ou até acabar a vodka nesse copo.
Ele estava escutando os Beatles hoje, ou ontem, ou sei lá. Não existo nele para ficar contando as vezes que escuta a mesma música. Mas o garoto tem bom gosto, pelo menos em algo esse imbecil tem de aceitável. Aqueles moleques de Liverpool eram maravilhosamente talentosos, estilosos e espiritualizados. Não era a toa que despertavam a euforia da menininhas pelo mundo na década de 60. Bons tempos aqueles, em que você resistia e tinha rodas com os amigos para planejar a derrubada das ditaduras pelo mundo. Lembro-me de uma vez, quando estava no retiro espiritual da Índia com os camaradas do partido e outras figuras pitorescas atrás de iluminação. Aqueles carequinhas simpáticos, monges e cabeludos nos ensinavam sobre como era super necessário ter desapego pelas coisas materiais, ao sexo, aos vícios, e etc. Achei aquele momento uma perca de tempo. Com quantas mulheres aqueles capados teriam transado na vida ? Ou bebido todas e mais um pouco, colocado a conta no nome do sogro e fugido logo em seguida ? Mijado no caminhão do exército, sem os militares estarem olhando ? Se para me iluminar precisava ficar cego das coisas que valem à pena, decidi ir embora. Dane-se o partido, foda-se as ideias maricas deles. Eu continuava sendo a revolução (estava lúcido, porém bêbado).
Foi aí que Buda jogou aqueles quatro pilantras no meu caminho. Uns estrangeiros branquelos com cabelos bizarros que mais pareciam anões do jardim da Babilônia. Aquele cheiro de marijuana explicava muita coisa, inclusive a língua estranha dos moleques. Eram umas palavras num dialeto estranho, ou podia ser o álcool fazendo efeito na minha cabeça. Mandei um "olá" bem alto aos quatro, e eles me responderam com "Good Morning". Retruquei confuso sobre quem era essa tal de "Good Morning", e eles se olharam surpresos. Sorriram. O baixinho com cara de idiota disse "Why?" e nesse grunhido já fiquei desolado. Como era possível os mineiros terem a audácia de usarem esses arremedos de palavras no exterior ? Daqui a pouco algum deles iria me oferecer queijo e cartões postais de Belo Horizonte. Meti uns belos palavrões nos ouvidos deles. O cabeludinho com cara de menino me chamou num canto. A única coisa que entendi foi o nome "George Harrison". Porém, as palavras que saíram da boca dele não precisavam ser entendidas, mas contempladas. Via o esforço dele em me fazer entender o que estava acontecendo. O sorriso e a passividade dos gestos acalmavam meu coração de alguma forma, mesmo ele para mim não dizendo nada com nada.
Peguei o avião de volta a República dos Bananas Militares. A situação estava feia, tão quanto o Golpe quatro anos antes. Havia um rebuliço gigantesco nas ruas e as pessoas estavam cada vez mais engajadas. Isso me animava. Fui na casa de um colega de luta para combinarmos estratégias de mobilização estudantil, quando me deparei com uma notícia naquela banheira que ele chamava de televisão. O moço jornalista falava em "The Beatles numa busca espiritual em solo indiano". Tal a minha surpresa com os rostos dos integrantes da maior banda do planeta naqueles últimos tempos. Eram os almofadinhas que esbarraram comigo na Índia, aprendizes das técnicas de paz/tranquilidade e do uso de instrumentos esquisitos. Desde este dia nunca mais pensei em beber durante um retiro. É melhor sóbrio em companhia dos Beatles do que bêbado com cabeludos falando grego!
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Crônicas de Salazar
AventureReivindico estes textos a uma das contrapartes do pequeno pseudopoeta. Nestas linhas, nenhuma solidão ou tristeza permanente como acontece na vidinha sem graça dele. Apenas minha vida mundana e aventureira nessas linhas de rara elegância. Sinta-se à...