Capítulo 2 - Um instante nos Anos 80

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Esse causo não estaria num conto de fadas, e provavelmente nenhum escritor mixuruca de auto-ajuda o utilizaria de exemplo naquelas palestras tediosas de uma hora cada. O pseudo- poeta do caos está fadado ao fracasso. Não saberia falar sobre isso sem chorar. Embora ele compartilhe alguns pensamentos comigo, Salazar Ortivez continua sendo o esplendor que ele jamais poderá se tornar um dia. Enclausurado na cabeça dele, é verdade. Porém cheio da vitalidade que ele nunca poderá gozar naquele corpo doente. Enfim, não vim aqui para falar do mariquinha de versinhos empobrecidos. A vontade de potência se faz em mim, sempre.  

Relembro das noites negras passadas nos anos 80 como se fossem ontem. O exercício no partido estava ameaçado, devido algumas caras novas quererem colocar as velharias dentro dum saco e jogá-las no rio mais próximo. Aquele amontoado de políticas que discutíamos desde o período dos milicos eram, sem dúvidas, necessárias. Mas aquele bando de lambe-botas da nova geração nos queriam presos ou até dentro de uma sepultura. Fui duramente perseguido por aqueles novos moleques e precisei me esconder por um tempo. Gostava de estar no anonimato, lendo o jornal da manhã, xingando os miseráveis da possível republiqueta reinstaurada. A constituição foi uma piada na época pra mim. Mais furada do que gente baleada em assalto. A crônica escrita agora parece um convite a meu humor controverso aflorar, mas a circunstância do que preciso contar a seguir não se brinca. Nunca.

Era tarde naquela noite brilhosa. Como que por instinto, minhas forças tinham de apagado. Para um velho careca de quarenta e cinco anos e adoecido de tantas preocupações, a vida parecia curta demais para findar-se ali. Porém, a morte não envia bilhetes e fotos constrangedoras suas por debaixo da porta. O revólver em cima da mesa, minha mão sendo jogada em direção a arma. Não lembro se estava embriagado ou angustiado. Talvez os dois, num balé dos cisnes ou coisa parecida. Levei o cano da preciosa até a boca, como se ele fosse alimentar minha cabeça esvaziada. Tu não imagina, caro leitor, as mil merdas vistas naqueles momentos insanos. Os olhos viraram caleidoscópio, em projeções rápidas das malandragens cometidas nos anos anteriores. Até quando roubei a hóstia do padre na missa veio como um chamado para a risada. Na janela do quarto, somente estrelas. Ele estava desarrumado, então não vale a pena descrever as infindáveis garrafas de Whisky e revistas sacanas espalhadas junto da roupa suja no chão. Morreria ali feito um porco no próprio abate.

Na confusão de meus nervos, tranquei a porta do quarto. Que perdido a deixaria aberta tão facilmente para as pessoas encontrarem o cadáver ? Morreria só, assim como nasci. Sentei na cabeceira, tal numa posição de fotografia conceitual de disco ruim. Deixei a preciosa arma na altura da testa, e descarreguei o pente. Enquanto os olhos estavam fechados, vivi toda minha existência novamente. Cada segundo foi relembrado, deitado à força por minhas lágrimas. Meu pais sentiriam vergonha de mim. O poetinha de araque sentiria, mas não preciso do remorso desse paspalho. Tive coragem pra dar cabo de mim, e ele não passa de um frustrado. Enfim, a arma estava descarregada, sem balas, desde o começo. Com o gatilho se ouvia apenas o "click, click". Vejamos, eu era mais um suicida prestes a dar adeus sem remetente. Se o remorso não veio, surgiu a culpa de não entender porque cheguei naquela ação. Desde aquele dia, precisei de acompanhamento psicológico para compreensão das minhas deficiências. Não é toda vez que o leitor observa um heterônimo discutir suicídio, mas estou trabalhando pra inovar. O miserável por quem escrevo não me domina.

Logo, esse texto remete a uma vontade antiga de falar com o público: a vida é importante. Por mais deprimente esteja a sua situação, fugir dela assim não resolverá. Você não é fraco por chegar a esse ponto, mas muito forte. E será ainda mais dando outra chance a existência, mesmo que quase nada nela valha a pena. Sua vida importa apesar dos pesares. 

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⏰ Last updated: Apr 08, 2020 ⏰

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Crônicas de SalazarWhere stories live. Discover now