1. Flores amarelas

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Gabriel tinha vinte anos e era recém formado no ensino médio. Sempre tinha um cadinho de atenção pra dar, fosse conhecido ou não. Era um sujeito dos bons.

O ar era daqueles que dão vontade da gente sentar e conversar até as luzes do arrebol desaparecerem e nesse então a lua nem faria falta porque só dele estar ali era uma garantia de que a noite não careceria de outra iluminação.

E era por isso que apesar de não ter um cruzeiro no bolso ou ser um sujeito de intelecto excepcional ele era chamado pra tomar café na casa de quase todo mundo em Motirõ.

Tinha olhos pretos, retintos. Íris e pupila se fundiam. O rosto era bonito: nariz largo, boca bem feita e cheia, queixo quadrado e cabelo crespo muito curto. Só que o mais bonito em Gabriel era o semblante e o jeito que tinha de se importar com todos e mesmo assim não carregar o peso do mundo nas costas.

Naquela tarde ele caminhava com despreocupação até a floricultura de dona Amélia. Lá apanhou uma dúzia de rosas amarelas, agradeceu com uma rápida reverência e um beijo nas mãos enrugadas e pálidas da proprietária. 

Não pagou porque aquele foi o "soldo" por ter ajeitado o telhado na semana anterior. Sorria besta porque além das flores na mão, sentia no bolso esquerdo o peso da aliança. Era um peso bom. Daqueles que se sente quando você está ansioso por ir realizar algo que queria há muito tempo. 

E Gabriel tinha motivos, iria pedir a mão de Lazúli.


—Viu passarinho verde?— Perguntou Adelaide enquanto ajeitava o avental e empinava o decote do vestido.

— Não vi, mas vou ver.— Respondeu usando o buquê para apontar a direção da casa da namorada.

— Ah...Tava na hora, né! —Ralhou a mulher na brincadeira. 

—Tava mesmo e agorinha mesmo vou acabar com essa enrola.— E não iria ver um pássaro verde e sim dois. Seu Zé havia prometido ajudar com a coisa da Dorinha. Que ninguém sabia direito a razão, mas a chiadeira no peito não sessava.

Caminhou uns bons vinte minutos até chegar na porteira do sitiozinho de José Camilo Ventura, o Seu Zé, que de chique só tinha o nome. 

—Vai um cafezinho? — Lançou o anfitrião.

—Até dois. —Descansou as flores amarelas na mesa da varanda e foi até a cozinha buscar os copos. 

Sendo velho conhecido poderia  sem cerimônia alguma servir o café e assar um bolo.

— Gabriel, ajeitei o negócio ali. Cê leva Dora pra cidade de carona com o Benício. —

Entregou um maço de cédulas de cruzeiro. Gabriel nem agradeceu verbalmente e nem pensou em recusar. Só deu um abraço no homem, sentando numa cadeira a frente.

Estava no limite de chorar, mas ao invés disso picou fumo na mesa de madeira velha e perna remendada. Enrolou dois cigarros no papelote, um pra si e outro do velho, que baixou a cabeça em agradecimento. Passou o fósforo para o moço que somente após servir-se de um gole de café riscou fogo pra fumar sossegado.

—Tô indo pedir a mão de Lazúli, mas antes tinha que passar aqui.— Puxou conversa somente após uns dez minutos. Apesar disso o silêncio não era constrangedor. Nem ele e nem o senhor eram de desperdiçar verbo. 

— Não dá pra fazer coisa boa com um peso desse nas costas. Ela ia sentir o pedido triste e era até capaz de fugir com outro de desgosto.— O velho soltou a fumaça do cigarro após o ''alerta''. Lazúli era uma moça bonita. Filha de uma índia que nunca falavam o nome e de João, o marceneiro que fez a mesa onde eles depositaram a xícara e picaram o fumo. 

Era apelidada pelas crianças da escola rural de Jaci, a lua. Ela poderia ter escolhido alguém melhor, financeiramente falando, só que na vida também temos que nos cercar de quem faz bem pro espírito e cá em Motirõ, Seu Zé duvidava que tivesse remédio melhor pro espírito dessa Jaci do que o Gabriel. 

— Acho que Delmiro Beltrão vai me apagar pra ficar com a nascente, Gabriel.— O assunto foi jogado sem grandes rodeios. O rapaz entendeu rápido e tentou parecer despreocupado.

— Vai nada. Que ele vai querer com esse Jurupari meio morto? —O rio Jurupari não tava meio morto e a fazenda miúda dava poder demais pra um coitado como Seu Zé. 

— A viúva do Almeida mudou semana passada. A parte dos Gouveia era o que faltava.— Não tava muito otimista e tinha razão de ficar assombrado. 

—Melhor o senhor partir rápido daqui.— Sugeriu sem medo de parecer covarde. Gabriel achava que coragem era pra quem não importava mais em ficar vivo. Dava pra recuperar a dignidade de um sujeito desde que ele continuasse vivo. Já um defunto tava aí pra ser comido de bicho. 

— Tô vendo se vou. Tenho medo e não tenho pra onde ir. —Riu sem felicidade alguma, riu assim mesmo porque já tinha passado dos dias em que tremia por esses assuntos.

—Fica lá em casa uns dias— Ofereceu mesmo sem ter quarto vago ou comida sobrando.

 —Dá não.—Não dava porque tinha medo de complicar a família do moleque.

O que não deu foi tempo dele explicar a preocupação. Pela porteira da casa passaram dois soldados fardados e outros dois de gravata. Nunca achou que fosse receber visita oficial naquele fim de mundo do Estado de São Paulo.

—Entra.—Entra aonde? Pensou Gabriel ainda atordoado. Foi Zé quem tomou a dianteira. Apesar de velho estava mais entendido desses assuntos que o moço que era letrado, mas inocente da vida. 

—Sem enrolar, vagabundo.—Era o engravatado da direita, o nanico. Gabriel quis rir por achar contra natureza ter medo de um sujeito tão diminuto, mas o fardado da esquerda sacou a pistola e lhe apontou o cano frio. Fechou os olhos e respirou fundo. 

—Tem nenhum vagabundo não, senhor. A gente é trabalhador.— Gabriel soltou a defesa com um  gosto amargo na boca, sabia que não lhe dariam crédito, mas não sabia de onde tirou tanta certeza. 

—Vamos descobrir depois.— Foram conduzidos entre pontapés e socos até o veículo.

Achou que ia desmaiar e que o velho chegaria no assento finado, mas errou. Sentiu a dor de cada golpe.

Nem ele e nem Zé morreram.

No percusso de quatro horas, que Gabriel identificou pelo altear do sol, não falaram, não pediram pra mijar por mais que tivessem vontade. Também não trocaram olhares e nem fizeram perguntas. Nem quando descobriram ter chegado na capital do Estado. O moço só pensava que ninguém havia fechado a porteira. Zé lembrou dos bichos sozinhos e ficou agoniado.

JACI, TEU NOME TAMBÉM É SAUDADE  𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸Onde histórias criam vida. Descubra agora