3. Estúpido Cupido

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O olho esquerdo não abria sozinho, mas havia  tempo desde que era deixado em paz.

Gabriel teve então certeza de que soltar o nome de Delmiro havia sido boa ideia. Aquele safado ordinário. 

Depois de convulsionar na poça d'água após os eletrochoques no pênis ele foi deixado de banho maria. 

A angústia agora era o bater do bastão do soldado nas grades anunciando que havia chegado e levaria mais um. 

Qual? Seria mais um dia onde desceria mais um degrau do inferno ou respiraria aliviado por ser esquecido novamente, mas qual o quê, depois de uns minutos alguém começou a cantar um desafinado: "Oh! Oh! Cupido! Vê se deixa em paz. Meu coração que já não pode amar. Eu amei há muito tempo atrás. Já cansei de tanto soluçar." 

Quem não conseguiu acompanhar o pop rock gargalhou. Era difícil definir de onde saiu a cantoria, por esse fato, apanhou só quem tava na frente. 

Levar, levar...Levaram apenas o Espeto.

Espeto era vendedor ambulante e mentia pelas ruas dizendo que era estudante de jornalismo e fazia e acontecia. Agora quem convivia com ele percebia que não sobrara muita coisa. 

Espeto ria, comia, cagava e contava piada, mas Espeto não era mais Espeto. A família o receberia depois daquele dia, pois seria solto.

Teriam outro Espeto, um sujeito desenraizado e despersonalizado. Havia sido batizado como Aníbal Seixas. Tinha orgulho do nome por ser o mesmo de Aníbal Barca, o estrategista cartaginês e do sobrenome Seixas porque gostava de Raul e brincava com os fregueses dizendo ser primo distante, primo próximo, irmão renegado.

Quem lhe cria? Ninguém, mas falava do mesmo jeito. Sairia lembrando somente do Seixas que não era ele, pois ainda que não se reconhecesse mais como Aníbal Seixas, vez ou outra cantarolaria "Só, sem ter ninguém, vivo a sofrer, me lamentando, também procurando. Toda verdade esquecer"

—Benedito entregou que o velh...—Baltazar pigarreou e corrigiu pra não ser desrespeitoso com o finado. 

Benedito havia dividido cela com o Zé antes de ser enviado para geladeira, um cubículo onde se era posto sozinho sem água ou comida e a temperatura ia aos extremos: insuportavelmente frio ou um calor dos infernos.

—Seu Zé... disse ter dado pouso a uns viajantes e os levou até a saída da cidade no carro. 

Foi pela conversa que circulava entre uma mudança de cela e outra e após a ida e volta de Juvenal que eles descobriram que Zé morreu de perfuração no intestino. Esqueceram como enfiar um pau num cu sem abrir o sujeito.

— E isso lá é motivo, Baltazar?— Reclamou Gabriel que se recostava na parede fingindo tentar dormir.

—Tá aqui há quanto tempo que ainda procura motivo pras coisas?— Isso era Juvenal. Os três que lá estavam riram do disparate. 

Passavam a maior parte do dia calados. 

Conversavam separadamente, quando um era levado e ficava só dois a dividir espaço. A três o silêncio era reconfortante. A dois? Um horror. Lembravam de tudo, da morte, das porradas, de que seriam os próximos e que não veriam mais ninguém que queriam reencontrar.

Foi nessa de estar só dois que Baltazar contou a Gabriel sobre Juvenal. 

Juvenal era um índio Waimiri-Atroari, morava na fronteira entre Amazonas e Roraima. Foi vendido criança para um funcionário da SPI, o Serviço de Proteção ao Índio. 

Trabalhou na casa em troca de casa e comida.

Era meados dos anos 60 quando o órgão foi dissolvido, criaram outro e ele voltou pra casa ainda um molecote. Demorou a ficar bem de novo, acostumar com o mato, mas gostou. Por ter gostado que quase morreu de desgosto ao ficar sabendo que um tal de General Gentil Nogueira Paes ia atravessar a terra com a estrada custe o que custar. 

Custou mesmo, estavam matando o povo todo. 

Eles se desesperaram e partiram pra cima também. 

Ganharam fama de violentos, brutos, selvagens. Mais motivo pra serem mortos. Quando não aguentou mais e viu que não tava dando cert daquele jeito ele pegou caminho pela mata, foi sobrevivendo de restos e depois de um tempo de muita andança chegou no Tocantins.

Foi do Tocantins e dos bicos que arrumou por lá que ele veio pra capital paulista. 

Quis falar com os jornalistas sobre o que tava acontecendo no Roraima e Amazonas. 

"—Juvenal tem jeito manso e esses zóios de boi amigo, mas aquele tamanhão todo fazia com que ele assustasse até na hora do bom dia —" Disse Baltazar um dia desses.

Foi indo atrás de jornalistas que Juvenal conheceu Melissa Albuquerque, estudante de medicina da Universidade de São Paulo. Ela era namorada de Tobias dos Santos, um dos colunistas do 'Diário da Noite'. 

Primeiro Melissa terminou com Tobias pra namorar Juvenal. Quando Juvenal conseguiu se estabelecer na construção civil e começou a estudar de noite ela deixou a casa dos pais.

Eles saiam juntos pra tentar achar quem publicasse a denúncia do que estava sendo feito com os Waimiri. 

Foi depois de tanta negativa e após o sumiço do irmão que Melissa abandonou também a faculdade de medicina, beijou Juvenal nos olhos, disse que o amava e despediram-se definitivamente em abril de de 1973, estavam juntos há um ano e meio e ele não teria mais notícias dela.

Jogaram-no ali na prisão após ele ter arrebentado com o equipamento da Rádio do Povo, teria saído depois de um par de surras, mas foi identificado como marido de Albuquerque e eles encasquetaram que Juvenal teria algo a se dizer. 

Nem se tivesse contava.

No meio dessa lida ele só tinha uma certeza: foi idiota de ter saído do Estado do Amazonas achando que alguém lhe escutaria as denúncias pra acabar com a matança por lá. O exército que tava atirando e era o exército que tava no poder. Devia ter feito como Melissa, pegado no fuzil e levado uns quantos juntos. Era melhor do que estrebuchar feito peixe de aquário espatifado no asfalto.

Juvenal voltou com com o pé inteiro esmagado e um olho vazado. Resolveram fazer 'o favor' e igualar o pé com os dedos pra não ficar muito feio. 

Além dos gemidos e do pranto ele não disse palavra alguma por dias. Vez ou outra, com um economizado gesto de mãos que pedia ajuda pra se arrastar até o buraco de merda pra poder cagar.

JACI, TEU NOME TAMBÉM É SAUDADE  𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸Onde histórias criam vida. Descubra agora