5. A falta que você me faz

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A chuva caía pesada lá fora e Gabriel só pôde fechar a porta com o trinco de ferro depois de ter o tapete ensopado. 

Beirava cinquenta e tantos, ainda era um homem bonito, mas não escutava de um ouvido, possuía dentes falsos e tinha um joelho esfarelado que transformou qualquer trabalho numa penúria constante. 

Sob a mesa havia uma carta de Melissa Albuquerque, ela e Juvenal viriam visitar assim que terminassem o pós-doutorado na Itália. 

Ela era médica e ele um ambientalista e professor universitário de ciência política.

Dos três filhos, o mais velho se chamava Baltazar, namorava uma chinesa que estudava direito na USP, aluna de intercâmbio.

As vezes se pegavam crendo que o Baltazar morto aos dezesseis anos pôde enfim se declarar para a moça que tanto queria conhecer e finalmente se arrumava pro tão sonhado primeiro encontro.

Morreu após levar uma descarga elétrica forte demais no pênis e no anus, o oficial novato responsável pela sessão ainda tava aprendendo a infligir dor sem matar o sujeito. Obviamente não se mostrou um aluno muito bom.

Coincidentemente o filho de Juvenal e Melissa falava mandarim como se fosse nativo desde os dez anos de idade.

—Tá cansado, Birosca?—

Afagou o pelo farto do animal que ronronou fraquíssimo e logo virou para o lado como se estivesse sem forças. 

Birosca era o gato malhado velho e último descendente de Rajada, um dos bichos que seu Zé deixou para trás antes de ser detido e morto.

Gabriel quando voltou para a cidade após ser solto oito anos depois conseguiu encontrar somente alguns dos ''filhos'' dos animais de Zé e agarrou-se a eles como se fossem seus. 

Eram o elo que tinha naquela terra, pois Dora ele jamais encontrou, talvez estivesse morta.

Ainda recordava da noite fatídica de sua libertação.

Não teve parentes para recepcioná-lo e ao chegar na cidadezinha descobriu que Dora desaparecera após ir para São Paulo buscar notícias suas.

Lazúli, a sua Jaci, também foi várias vezes na capital, primeiro com e depois sem Dora, mas só virou notícia nacional ao morrer na guerrilha do Araguaia. 

Virou terrorista, disseram os conhecidos. 

Ao ouvir isso pela primeira vez riu como besta e acharam que ele tava louquinho, então sem pranto ou grandes indagações ele saiu reunindo os bichos de Seu Zé e foram todos morar na casa onde ele cresceu com Dora. 

Gabriel jamais saiu de lá e ninguém tornou a vê-lo sorrir.

Décadas atrás eram os animais a se enroscar nele que lhe davam o mínimo alento, abrandando as crises de pânico, sem zombar quando acordava todo mijado e cagado quando os pesadelos e alucinações traziam para seu pequeno quarto o calabouço de tortura. Mesmo após muitos anos seu corpo recordava e temia a sensação trazida pela tortura.

 Agora apenas tinha Birosca. O Birosca ainda mais cansado e velho do que ele.

Um forte trovejar fez com que se levantasse da cama sobressaltado. 

Tropeçou nos lençóis ao tentar descer e ao apoiar a mão no chão percebeu que os dedos pararam rente ao focinho gelado e inerte do gato malhado. 

Finalmente descansara.

Puxou o animal para si abraçando o corpo mole.

 As lágrimas inundavam o rosto e desentalou ali o choro retido por mais de vinte anos. Estava cortado ali seu último elo com a (des)humanidade.

Pôs a água no fogo para o café, cortou uma grossa fatia de bolo de trigo.

Comeu e bebeu em silêncio sem desviar os olhos do buquê de flores amarelas que mantinha no vaso da mesa como se fossem sua religião. 

Ao terminar enrolou o gato na manta favorita fazendo um pequeno casulo cor de rosa.

Saíram os dois na chuva, nos primeiros minutos cortavam caminho pelas ruas da cidade, os ladrilhos ensopados. Uma hora depois e a caminhada já acontecia na lama da estrada que dava para o Jurupari, onde tudo havia começado. 

A fazendinha do seu Zé estava abandonada, a casa caindo aos pedaços, o rio cheio mais bravio com a tempestade a engrossar a força das águas.

Gabriel enfiou ambos pés na margem, fincando-os no fundo para certificar-se da força da correnteza. 

A pontada no joelho veio forte e quase gritou com a dor. Percebeu assim que não conseguiria nadar. Soltou a manta onde o gato estava, o rolinho boiou por uns metros antes de desaparecer para sempre. 

Só então o homem deu outros dois passos. 

Tinha a água na cintura. Olhou para frente e enxergou Baltazar caminhando tranquilamente ao ajeitar uma camiseta vermelha estampada sobre o peito. 

Sem os moretões das porradas, a sujeira pregada no corpo e o castigo da fome ele ficava até bonitão. 

Gabriel e o "recém chegado" abriram a boca num sorriso.

—Eu queria ter visto era Jaci.—

—Não sejas ingrato, filho da puta.—

O palavrão veio acompanhado de um rápido apontar ao céu onde a lua minguante custava ser vista. Num sinal de entendimento, Gabriel assentiu.

— Que boca porca da porra. Por acaso também vai aprender a xingar em chinês?—

Ralhou sem interromper a própria caminhada. Só o nariz e olhos estavam para fora.

—E é mandarim.—

Corrigiu o Baltazar que desapareceu no mesmo instante que Gabriel submergiu nas águas do Jurupari.


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Jaci: Jaci (do tupi Ya-cy ou Ia-cy, mãe dos vegetais), na mitologia tupi é a deusa Lua, protetora das plantas, dos amantes e da reprodução. Para iluminar a escuridão enquanto dormia, Tupã criou Jaci, a lua, uma deusa tão bonita que ao Guaraci despertar por sua luz, apaixonou-se por ela

Jurupari: Jurupari é um personagem mitológico dos povos indígenas da América do Sul. O povo Mawé retrata Yurupari não apenas como um demônio, mas o próprio mal, aquele que deu origem à outros demônios. Na época da chegada dos primeiros europeus ao continente, Jurupari era o culto mais difundido.

JACI, TEU NOME TAMBÉM É SAUDADE  𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸Onde histórias criam vida. Descubra agora