2. O laço de Jurupari

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— Deixa de frescura e responde logo. —

Os chutes e pontapés que começaram na propriedade de Motirã continuaram no cubículo da capital. A princípio Gabriel ainda tentou desviar, amortecer o impacto e até mesmo reconhecer o espaço, decorar rostos, mas desistiu.

 A essa altura estava nu e já havia desmaiado outras duas vezes devido as porradas. Temeu ficar desacordado novamente porque lhe despertariam com água gelada.

—Seu Zé, onde que tá? —Perguntou Gabriel com dificuldade.

A cara sisuda do oficial retesou no que para o rapaz parecia a máscara de uma entidade posta nesse mundo para assombrar  gente. 

Tentou engolir a saliva, mas não conseguiu e ao invés disso ficou com a boca virada pro chão sem poder se mexer. 

Ergueu olhos para o cômodo, as paredes cinzas tinham manchas secas vermelhas, o piso de madeira estava na mesma condição. Era uma camada tão densa que nem a água atirada amolecia o grude. Já era parte da mobília. 

Ele temeu fazer parte daquele lugar também, temeu que aquele horror lhe entranhasse nos ossos e fosse tudo que pudesse sentir.

A bota suja de sangue foi a última coisa que viu e sentiu naquele dia. 

O tempo passava diferente ao estar enclausurado e ferido. Tornou-se uma deformação de horas porque nessa situação  não há sol, relógios ou vizinhos. 

— Tá bem, rapaz? —Quem dizia isso era um descabelado com aparência anêmica e que vestia uma calça jeans tingida de sangue e merda secos. O lugar fedia. 

Pelo tom ele soube que não foi interrogado sobre estar realmente bem e sim se achava que passaria dessa noite.

—Tô, vou ficar, que jeito tem. —A boca inchada não o deixava falar claramente, a voz embargava, o som ficava 'no meio do caminho'. 

— Responde qualquer coisa, qualquer coisa que possa fazer eles pararem de te bater pra ir procurar o que investigar. — Foi por esse conselho dado sem requisição que percebeu ter outra pessoa ali.

Eram três: ele, o magrelo e o careca de dois metros de altura ainda mais desnutrido do que o outro e que aparentemente não tinha um pelo sequer por cima do corpo. Tinha o corpo cheio de  moretões e perebas purulentas que cicatrizavam meio contra natureza, entre novas infecções e golpes.

—Por que me trouxeram pra cá? —O magricela riu, faltava um dente após o canino. 

—Tu não sabe e eles não contaram?O moleque tá ferrado, Juvenal. — Falou pro careca não como quem fizesse graça, mas como quem já não tinha muita piada pra fazer e usasse aquele tom pra tudo, até pro inoportuno.

—Deixa disso, Baltazar. — Juvenal retorquiu sem secura ou firulas, era prático, por mais que não tivesse vindo ao mundo com uma altura igualmente prática, afinal de contas, essas coisas ninguém escolhe. 

Olhou para Gabriel e começou a conversar sem se mover, não poderia nem se quisesse. O pé esquerdo tinha os dedos esmagados, havia um pedaço de unha pendurada meio cravada na carne e meio querendo 'pular fora'.

— Fez alguma coisa? Andou com quem participou? Bebeu no boteco errado? Sentou com um estranho? Te buscaram na casa de quem? —

O moço balançou a cabeça em negativa.

Depois disso não se falava mais nada. Era bom não saber demais.

Ninguém ali recebeu água ou comida. 

Ruim pro estômago que sentia colar nas costas, mas ao menos não formaria fila pra usar o buraco por onde escoava a merda. Foi somente no dia que Juvenal resolveu arrancar fora a unha que receberam um copo de água e tiveram pão e um naco de feijão postos para alimentação. 

JACI, TEU NOME TAMBÉM É SAUDADE  𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸Onde histórias criam vida. Descubra agora