4. Melissa e o som

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"Secura do cão", pensavam os três. 

Tinham os olhos fixos no teto, como se esperassem dele algumas grandes verdades que os tirariam do inferno onde estavam metidos. 

Não sabiam há quanto tempo seguiam ali, se eram meses ou anos. 

As horas se arrastavam esquisito, de um jeito que não se deixava marcar. 

Obviamente continuaram sem as tais respostas e somente minutos depois de Baltazar cortar o silêncio indo mijar no buraco de bosta que Juvenal resolveu iniciar a conversa. 

Estava mais corado e o pé esmagado, purulento, principiava a cicatrizar e já se notava que não teria mais muita serventia.

O que começou com uma conversa sobre o clima ruim, suor fedido e saudade do cheiro de chuva descambou para os amores que não queriam deixar morrer naquele cubículo da repressão. 

Elas ainda se lembrariam deles? Acabaram presos nessa agonia porque Baltazar sinceramente não tinha quem o recordasse e doía essa falta de oportunidade, Juvenal já não recordava se o calo do dedão de Melissa era no esquerdo ou direito e Gabriel?

Gabriel todo dia imaginava um som diferente pra risada de Jaci sem conseguir ter plena certeza de qual era o verdadeiro.

—Eu queria casar no civil sem festa, Melissa queria a festa sem casar no civil...Sinto falta dela... de acordar brigando até pelo que não era motivo de briga.—

Baltazar colocou os braços sob a cabeça, usando-os como desconfortável travesseiro, já que as mãos ossudas lhe cutucavam a pele como um espinheiro.

— Ela era mais esperta que você.—

Assinar um documento definitivamente não era negócio melhor do que comer e beber até a barriga estufar. 

Instintivamente a boca dos três se encheu de água. 

Era a fome, não só por alimento. 

Ultimamente a inanição os atingia em todos os aspectos. 

Atacava o estômago e se estendia ao mínimo: fome por sentir um toque no ombro, pela leveza de um café trocado no fim da tarde ou o banho de água quente e o bolo de frutas secas comido na casa do único amigo meio rico. 

A ânsia de ter os ouvidos cheios pela melodia de alguma música ridícula que escutariam felizes somente pelo prazer de poder chamá-la de ridícula.

—Esperta era mesmo, falava bastante também. Podia passar a noite inteira conversando se dessem trela. —

Gabriel esticou o braço para coçar uma ferida do rosto e arrancar a casca. Abriu um sorriso exibindo os dentes amarelados.

—Não consigo te imaginar com uma tagarela.—

—Mas eu não disse que ela falava a noite inteira, só que eu poderia escutá-la. Melissa falava o suficiente, de quando em quando.—

— Como um cara como tu foi parar com uma universitária rica?—

Baltazar era jovem, tendo crescido num ambiente onde tudo era separado religiosamente, ainda quebrava a cabeça para entender de convivências atípicas.

—Ela disse que gostou de ficar com alguém que nunca ouviu gritar.—

Juvenal não falava alto, nunca. 

O pai de Melissa berrava até ao pedir o prato na mesa. O antigo namorado também. Nem mesmo o irmão dela escapava de ser um produtor sonoro não requisitado na vida da garota, mesmo que só levantasse a voz para conversas casuais e competisse com o volume do rádio sempre muito bem humorado. 

Tudo isso fez com que o silêncio fosse uma realidade estrangeira e quando o encontrou em Juvenal resolveu tentar uma caminhada juntos, sem alarde, a dois.

— Moça esquisita.— Gabriel cutucou o braço de Baltazar como se censurasse uma criança por uma malcriação.

—Olha quem fala, olha quem fala. O cara que se apaixonou pela menina do bairro chinês—

Juvenal não se ofendeu pelo estranhamento de Baltazar, as vezes nem ele entendia, assim como era incapaz de compreender como parou na prisão.

— Quando sair daqui tens que perguntar o nome dela... e aprender chinês.—

O índio cutucou o joelho e arrastou-se para mudar de posição e continuar a conversa.

—Comprar flores e levar a moça no samba.—

— Tenho dois pés esquerdos, mas preciso aprender chinês?—

—Se quiser que ela se sinta em casa...Sim.—

Era Gabriel quem falava dessa vez. Casa, uma lembrança tão velha, parecia de outro mundo.

—Eu quero.—

Riram, era tal qual falar no meio do boteco com uma gelada esquentando no meio e onde alguém esvaziaria o copo no meio da rua após um mosquito morrer afogado lá dentro.

— Serão padrinhos do meu casamento com Jaci então, nunca ninguém teve padrinho gringo lá na minha cidade.—

—Não sou gringo, inferno.—

Protestou Baltazar como se negar a nacionalidade fosse algum crime capital, mas não passava de brincadeira. Depois de meses ali ninguém se ofendia por tão pouca coisa.

—Parece gringo.—

Juvenal gargalhou sem malícia. 

Parecia mesmo, Baltazar era magricela, feições bonitas, corpo comprido, tinha sobrancelhas, cílios, cabelos todos muitíssimos claros. 

Era albino, aparentava ter mais do que seus dezesseis anos incompletos. Só que na situação em que estavam não sobrava tempo para se espantar com aspectos alheios, exceto quando algum deles voltava moído do 'escritório' do investigador.

—Não vou levar presente. Juvenal tem noiva rica—

—Tudo bem, Melissa e eu levamos—

Faziam planos que nem sabiam que teriam o poder de cumprir, mas falar e fingir aliviava a amargura dos dias.

Gabriel fechou os olhos, o cansaço o abatia rápido devido aos machucados que saravam vagarosamente.

Lembrou de quando conheceu Lazúli, sua Jaci.

Eram crianças quando se viram pela primeira vez e ela atirava pedras em meninos que fizeram o mesmo com um bando de cães vadios. 

Vê-la ali mirando e acertando os moleques, certeira, fez dela uma amiga necessária, era forte. 

Ao crescerem perceberam que a amizade não seguiria imutável e ambos quiseram se fazer fortes juntos, só não casaram antes porque queriam terminar os estudos e vencer um pouquinho a pobreza, para poderem somar o amor e não as misérias.

Mas era a face de Jaci que Gabriel as vezes via aparecer no torturador e isso o fazia gritar ainda mais. 

Em raríssimas ocasiões que via a de Dora, a mãe e o pai que ele jurava nem recordar mais os traços. 

A saudade transformava até mesmo seus queridos em algozes e quando isso acontecia ele pensava que perderia o juízo.

JACI, TEU NOME TAMBÉM É SAUDADE  𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸Onde histórias criam vida. Descubra agora