Cartas

Sem asas.

Eu vi um anjo hoje.

Com suas asas negras.

Seus cabelos escuros.

Seus olhos pretos.

Ele olhou para mim, dentro de mim.

Como se pudesse ler tudo o que se passava em meu intimo.

De imediato me assustei, me senti estranha, e na verdade ainda me sinto assim.

Após um momento desviei o olhar, e segui caminho, mas ainda sentia aqueles olhos pretos como a noite me vigiando  a cada momento. Senti um calor imenso queimar meu corpo, o mesmo calor que minhas ancestrais sentiram quando foram queimadas  na fogueira.

Apesar de ter muito tempo que isso aconteceu, sinto como se fosse ontem. Aquele anjo é encrenca e eu sei disso, com a mesma intensidade que sei o meu nome.

Continuo andando, ignoro seus passos. 

Não vou olhar para ele, não vou cair nessa.

Não posso fazer isso.

Preciso seguir adiante, não vou me deixar guiar por ele.

Com toda a força que posso sugar da natureza a minha volta sigo meu caminho, me concentrando apenas na minha proteção.

Abro a porta de casa, e ao fechar o vejo lá fora. Do outro lado da rua, ele sorri, sem mostrar os dentes, e sei que isso é apenas o inicio.

Tranco a porta, e a solidão da minha casa se abate sobre mim.

O silêncio grita alto em meus ouvidos.

O ar frio me abraça, e sei que ninguém se importa, talvez apenas o anjo se importe comigo.

Olho para o armário da cozinha, a faca pede para ser escolhida, mas hesito.

Não vou acabar com tudo hoje.

Amanhã será um dia melhor, repito a mim mesma. 

E todo fim de dia sigo repetindo o mesmo mantra.