4. Memórias maculadas

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  A culpa a corroía por dentro. Ela o abandonou com aquela fera para fugir. Ela se acovardou e buscou abrigo quando seu melhor amigo - que estava doente - disse para correr. Ele era tão pequeno e franzino, e sem uma arma o que poderia fazer? Ela sabia disso e mesmo assim correu. E então ele morreu. Desde então a culpa a infectara como uma doença que se alastrava dia após dia e nenhum entardecer passava sem que ela derramasse lágrimas pelo erro.

  Astrid escutou alguém se aproximando e enxugou as lágrimas, se posicionando para continuar o treino. Detestava que a vissem chorar - a fazia parecer frágil, algo que definitivamente não era. Posicionou o machado na mão esquerda e o atirou na árvore de onde escutara o barulho. Era Perna de Peixe trazendo bolinhos, deu para notar assim que viu os braços magérrimos como os de um pernilongo voarem quando ele soltou um grito esganiçado. Os bolinhos caíram no chão.

   - POR FAVOR - Ele berrou se levantando, revoltado - Eu JÁ PEDI pra não tentar me matar do coração!

   - Tá bem, desculpe. - A loira sorriu divertida - Mas não pode chegar assim de mansinho no meu treino!

   - Claro que posso! Isso aqui é patrimônio público, então em parte também é meu direito vir aqui quando quiser. - Perna de Peixe não conseguia deixar de soar estranho falando daquele jeito.

   O rapaz era até um pouco alto, BEM magro - ao nível em que seu apelido era pernilongo -, nunca se dava bem nos treinos e seu jeito de falar não condizia com um viking. Astrid desviou o olhar. Ele também fora amigo de Soluço, e era incrivelmente parecido com ele em alguns aspectos, como a aparência franzina e o jeito eloquente de falar. Assim como o outro, era mais inteligente do que forte. Mas Soluço era.... incomparável.

   - O que faz aqui? - Ela o interrompeu

   - Vim ver como você estava.

   - Eu estou ótima, porquê? - A garota olhou para os lados buscando um lugar onde pousar o olhar e coçou o nariz.

   Perna de Peixe a encarou com olhar cúmplice e triste.

   - Você vai ao memorial?

   Ela se calou.

   - Eu não vou se você não for. Todos aqueles hipócritas falando dele como se o conhecessem... - O magrelo bufou - nem parece que eles o ignoravam e falavam mal dele! Idiotas...

   O Memorial. O "Dia dos perdidos", criado por Gothi depois que Soluço se fora. Antes as pessoas iam ao evento para lamentar a perda do menino e pensar em como haviam sido terríveis com ele, pensar naqueles que haviam falecido em batalha e procurar forças para continuar, mas agora só servia para puxarem o saco de Stoico em busca de alguma recompensa. Por isso nem Astrid nem Perna de Peixe costumavam ir; faziam um pequeno encontro na cabana em que se escondiam com o amigo quando eram menores e lanchavam relembrando os velhos tempos.

   - Acho que deveríamos ir desta vez.

   - Sério? - Perna de Peixe arregalou os olhos e deu de ombros - Bem, eu vou onde você for. Só... podemos passar longe do Melequento e dos gêmeos? Eles não me deixam em paz.

   - Claro...

   Mas Astrid nem ouvira. Ocupara-se de olhar o céu e imaginar como seria se ele ainda estivesse por aí, vivo...

(_[*  *  *]_)

  Soluço estava boquiaberto. Surpreso. Arrepiado. O vento balançava seus cabelos e tocava seu rosto enquanto Pula Nuvem acelerava sob as nuvens. O ar era puro, leve, e parecia que não existia mal na vida. Ele gritou e em resposta o Dragão rugiu, e os dois riram. Estavam indo em direção a uma ilha que, segundo os boatos, abrigava um alfa impostor que obrigava os dragões a invadirem as aldeias e vilas para buscar comida. Algumas vezes este impostor até mesmo devorava os próprios servos para se alimentar.

  O Rei Branco havia explicado que aquele era um dragão banido, que crescera sozinho esperando estar forte o suficiente para enfrentar o alfa. Aquela espécie estava praticamente extinta, exceto por aquele. O menino humano havia se oferecido para investigar e possivelmente resgatar os dragões sob controle do Impostor (foi assim que decidiram chamá-lo). Para protegê-lo foram escalados Pula Nuvem e Lava Fervente, que era uma das melhores na tarefa de proteger por ser um tanto maternal.

   Quando chegaram ao local era noite, e estava bem frio. Pula Nuvem decidiu que era melhor organizarem um plano já que se o Impostor os visse ou sentisse era provável que tentasse controlá-los ou até matá-los.

   - Certo - Disse Soluço, em dragonês - Qual é o plano? Vamos invadir? Atear fogo? Destruir a montanha? FALEM, vamos logo!

   A verdade é que Soluço estava muito, muito, MUITO animado já que nunca permitiam que ele ajudasse nas Missões. Por ser o menor (e porque o Rei Branco era um pai superprotetor) era muito perigoso levá-lo, tanto porque os humanos poderiam querer levá-lo de volta quanto pelos outros dragões que poderiam confundi-lo com um viking comum. Por essa ser sua primeira missão ele estava muito ansioso.

  - Acalme-se, Soluço - Repreendeu Pula Nuvem - A pressa é inimiga do sucesso. Vamos apenas investigar.

  - Sim, é verdade - Concordou Lava Fervente - Você só vai entrar e ver o que acontece para podermos tomar alguma medida.

  O garoto bufou, mas assentiu.

   - Temos um aliado que vive neste ninho, ele vai levar você lá para dentro. Já que seu cheiro é de humano, o alfa pode confundir com um sacrifício, então não vai atacar. Você só tem que ver como as coisas acontecem pra relatar, ok? - Explicou o dragão vermelho

   - Tá bem, tá bem. Quem é o aliado?

  Um Dragão negro como a noite pousou atrás de Pula-Nuvem, parecia querer o máximo de discrição possível. Olhos cor de esmeralda e aerodinâmica perfeita para um vôo silencioso. Soluço prendeu a respiração, aquilo era incrível!

   Pela primeira vez em toda a sua vida, estava cara a cara com um Fúria da noite. O ânimo voltou com tudo.

   O aliado olhou feio para o menino e então a voltou ao maior.

   - Achei que tinha dito que me traria um ajudante - ele resmungou - Não um lanche.

   - Não seja mau, querido - Pediu Lava Fervente - Ele é o filho do Rei Branco.

   O dragão negro arregalou os olhos e fitou o humano.

   - Isso?

   Todo o ânimo de Soluço se esvaiu, substituído pela raiva. Que peste!

   Mal sabiam eles que se tornariam a dupla mais dinâmica de todo o arquipélago - que dirá do mundo.

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