Capítulo II

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Malu não era uma garota má. Não desejava o mal dos outros, muito menos dos seus e, se as vezes atacava antes de ser atacada, era porque sempre teve a pele bem escurinha e os cabelinhos bem crespos e precisou aprender desde cedo que a vida para pessoas de cor, mesmo quando ainda crianças, não é nada fácil.

A sociedade pode até dizer o quanto preconceito é algo horrível, errado e como todos precisam se esforçar para erradicar esse mal, mas não busca educar as crianças, o futuro da nação, da forma correta, sem distinção, criando-as para serem o molde de um futuro melhor, mais justo, seguro. Não compreendem que assim seria mais fácil, mais eficaz, menos trabalhoso do que tentar enfiar o que é de fato certo e errado na cabeça de um adulto criado em meio a uma sociedade retrógrada e ele próprio já infectado de ideais errôneos, injustos, machistas e preconceituosos.

Malu cresceu e com o passar do tempo aprendia um pouco mais sobre o mundo e seus inúmeros problemas, mesmo sem nunca ter saído do orfanato. Foi se armando das armas que dispunha, do pouco conhecimento sobre mundo que tinha, dia após dia, vivendo e aprendendo, se defendendo e defendendo as pessoas que ama e nunca abaixou a cabeça quando não estava errada.

Quando descobriu gostar de meninos e também de meninas, aos treze anos, demorou um tempo até compreender que aquilo não era errado como ouviu dizer. Gostar de meninos não era errado, então por que gostar também de meninas era? Não fazia mal a ninguém, não prejudicava ninguém com isso. Não era um crime, não era como roubar e matar, não era como bater em idosos ou maltratar animais, então por que sua sexualidade era algo a ser discutido?

Por que gostar de alguém com o órgão sexual igual ao seu poderia ser considerado algo tão errado? Ou sujo? Aquela era a vida dela, suas escolhas, seus gostos, suas opções, a sua sexualidade. Ninguém tinha que dar pitaco no que fazia ou não, do que gostava ou do que não, oras.

Como um mundo machista e retrógrado, preconceituoso e assassino de mulheres pode considerar cabível passar a mão na cabeça de homofóbicos e companheiros agressivos e assassinos e não considerar, apenas por um segundo, que os papéis estão invertidos? Gays e lésbicas precisam ser respeitados, não caçados. Criminosos precisam ser caçados e presos, não respeitados.

Malu via televisão, assistia jornais, lia manchetes assustadoras todos os dias, uma pior que a outra e não conseguia entender como deixavam aquilo acontecer. Compreendeu rápido que via o mundo de uma forma diferente, de uma forma que poucas pessoas viam.

Guardou aquilo para si mesma e, com exceção das suas amigas, suas irmãs de alma, ninguém mais sabia. Não contou a ninguém parte por temer um mundo ainda desconhecido e parte por rebeldia mesmo. Porque não é obrigada a se rotular, não é obrigada a demonstrar um mínimo de respeito ao dar a cara a tapa para um mundo que sequer se respeita.

Então gosta de meninos e também de meninas, mas e daí? A vida é e sempre foi sua, suas escolhas, seus gostos, sexualidade, por que diabos teria que dar satisfação do que fazia ou deixava de fazer a quem não merecia? Ou colar um rótulo na testa e ser julgada por isso pelo resto da vida?

Mesmo tão nova, Malu entendeu logo as complicações que provavelmente viriam por ser quem é, quando saísse do orfanato e foi justamente isso que aconteceu.

Mulher, negra, cabelo ruim e bissexual? Tudo que o mundo mais odeia reunido em uma pessoa só.

Recebia olhares pela rua, recebia olhares onde quer que fosse, coisa que quase nunca acontecia quando estava no orfanato e só naqueles momentos ela desejava voltar para lá. Eram raros os momentos em que se abatia com aquilo, com o preconceito velado, olhares de lado e cochichos, e o não, quando os famosos "negrinha insolente" e "preta atrevida" eram proferidos. Tentava não se importar, levantava a cabeça e até que fingia bem, mas, na maior parte do tempo, tão calejada estava que fingia não ver.

POR AMAR VOCÊ - SÉRIE JONES | LIVRO I [SEM PREVISÃO] Onde histórias criam vida. Descubra agora