Cap 1

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  As latas de tinta entulhavam a sala e o cheiro forte da poeira dos jornais não se dava ao luxo de sair do meu nariz e, mesmo assim, a excitação pelo apartamento novo não passava de jeito nenhum, era tudo um desenho pronto a ser colorido, que me deu a responsabilidade do pincel mais caro e mais prestativo da sala.

  Eu já conseguia imaginar, meu violão pendurado na parede, ao lado de três quadros em moldura branca. um deles guardaria uma foto minha com meu gato, tão preguiçoso que mal se manteve acordado durante a viagem inteira, e não contente, ainda dormia mais no quarto. No outro, uma foto com toda a minha família, tirada em um churrasco desastroso com carnes queimadas e uma privada quebrada, que deu início a diversos gritos e, talvez, por tais gritos, a coragem do culpado não teve como se manifestar. Pobre alma, ouvir a partir daquele dia a mesma reclamação em todos os eventos familiares não deve ter sido fácil...

  E por último, uma foto do meu avô, tão sonhador quanto eu, a razão de toda a esperança que tenho hoje e que sempre, sempre, esteve comigo.

  A parede do violão seria azul, com borboletas voando por todo o seu caminho em tinta, eu mal me contive de felicidade ao encontrar os tons perfeitos, e sabia que não teria mal algum colocá-los por toda a casa, era minha e ninguém mais podia intervir na decoração.

Meus pensamentos foram interrompidos por três toques na porta, quem seria uma hora dessas?

— Olá! — Dei um sorriso em resposta e pude, discretamente, olhar rápido para ter uma ideia de com quem estava falando, mas não era ninguém conhecido. A garota entrou como se já conhecesse tudo e deu uma volta completa na sala.

— O condomínio tem regras sobre a pintura dos cômodos depois que o lugar é renunciado, mas jamais pensei que esse lugar ficaria tão limpo e arejado sem aquele preto horrendo. — Ela sorriu.

— Preto é uma cor tão morta para um lugar que deveria ser tão cheio de vida... — Disse. Seu sorriso demonstrou que um "concordo" sem ser dito, era a palavra certa que acompanharia aquela conversa. E era certo, o apartamento tinha uma vista tão linda que cobrir as paredes com preto chegava a ser um insulto.

— Gostei de você, não é chata como a última.— Explanou.— A propósito, meu nome é Anabel, mas pode me chamar de Ana. — Ela se aproximou e pude ter a oportunidade de enxergar seus detalhes, os olhos azuis contrastavam maravilhosamente bem com seu cabelo loiro mel e o sorriso era radiante, tudo digno de um personagem de televisão ou uma princesa dos contos de fadas.— Alô? — Um estalo de dedos me trouxe de volta a terra.

— Eva. Me chamo Eva. E eu deveria considerar a primeira frase como um elogio? — Sorri medrosamente. 

— Você é tão fofinha, meu Deus! — Recebi um aperto forte nas bochechas e as mesmas foram puxadas com tanta força que doerá até o fim da vida, com certeza.— Aliás... Quando foi que se mudou? — Perguntou.

— Hoje! Amanhã o caminhão de mudança virá com meus móveis, então preciso me apressar aqui. — Olhei discretamente para o relógio e pude ver que já tinha se passado 8 minutos desde o momento que Anabel chegou ao meu apartamento. — Queria tanto passar um tempo conversando com você, mas eu tenho só até amanhã pra pintar tudo isso. A não ser que você queira conversar comigo enquanto eu preparo a tinta e faço o trabalho.

— E você acha que vou te deixar pintando sozinha? — Ela levantou uma de suas sobrancelhas e mexeu o dedo indicador de um lado para o outro.— Tem uma galera na minha casa, como sempre fazendo nada e comendo da minha comida, vou chamar eles aqui agora e farei deles seus servos. É só mandar que eles vão fazer, querendo ou não. E sua beleza é um bom motivo pra todos eles virem correndo aqui. — Eu ri com as palavras mal pensadas e me apressei para negar.

— Não! Tá tudo bem comigo. Não quero explorar gente que nem conheço, minhas mãos já são servas bem prestativas.— Sorri.

— Deixa disso, já volto.— Sua saída foi tão rápida que eu mal consegui convencê-la de que não precisava daquilo. O apartamento era pequeno, então eu conseguiria pintar tudo até o final da noite, e logo depois armaria uma barraca pequena na sacada do quarto, que incrivelmente tinha um tamanho perfeito para isso.

  Era um dos sonhos se realizando, e eu percebi nos muitos detalhes da casa e da cidade um mundo lindo para mim, ou talvez comum, mas lindo o suficiente pra se tornar o meu lugar. A ansiedade era tanta, que o meu trabalho tinha data marcada de início daqui dois dias e as roupas já estavam separadas na mala.

  Me mexi para preparar uma das latas de tinta azul, que serviria pra sala e corri até a cozinha onde tinha deixado os pincéis e os rolos, tentando começar o mais rápido possível minha tarefa. 

— Prontinho, mocinha, quatro homens gatos e fortões pra te ajudar a pintar tudo.— Derrubei o pincel no chão, não acreditei que Anabel realmente faria isso.

— Bom dia, raio de Sol.— Um deles pegou uma de minhas mãos e depositou um beijo. Ri ao escutar o apelido, é possível alguém ser tão carinhoso logo de primeira?— Meu nome é Alex, o mais gato de todos eles. E não se preocupe, meu coração já é seu e minhas mãos pertencem a essas latas de tinta.

— Alex também mora no condomínio, todo dia ele sobe um andar e vem me encher o saco. Não se liga muito porque ele é igual chiclete.— Todos riram e eu não sabia se podia ou não, então me calei, mas sorri em resposta.— Aquele ali ruivinho se chama Ed e é o gênio da internet.— O garoto acenou para mim.— E aqueles são Ben e Antony. Gêmeos.

— Mas nada parecidos.— Um deles disse.— Eu sou o Ben.— Tão lindo que meus olhos doeram. Jesus.

— E eu Antony.— Vi dois braços sendo estendidos em minha direção e fui surpreendida por um abraço caloroso. É, nada parecidos.

— O irmão do Alex estava com a gente, mas teve que ir por alguns motivos pessoas. Mas nada relacionado a pintura, ok? Ele viria se estivesse tudo de boa. — Anabel explicou e eu assenti com a cabeça, nem queria me aproveitar deles, foi tudo ideia dela, se eu ficar chateada por qualquer um deles ter saído já posso me considerar doida de pedra.

Três deles pegaram os rolos e Ed ficou com o pincel, pintando os cantos das paredes antes de acabarmos com a primeira lata de tinta azul e irmos para a cor branca. Com o tempo conseguimos terminar todo o apartamento e nos sentamos em meio aos jornais manchados. Depois de quase implorar por um número de alguma pizzaria, paguei três com o dinheiro que tinha guardado e nos sentamos no chão. Cada um se apresentou um pouco, e Alex fez o mesmo pelo irmão, os dois não eram tão íntimos até Alex decidir sair de casa e da pressão dos pais, passando a morar sozinho e trabalhando nas horas vagas como músico, a minha tensão diminuiu quando encontramos coisas em comum. Ed era tímido, mas simpático, pude ver que ele se acanhava por não me conhecer a tempo suficiente.

Ben e Antony eram realmente muito diferentes. Enquanto Ben demonstrava ser alguém cheio de si e aventureiro, Antony conseguia ser doce e seu sorriso era acolhedor. E todos eles compartilhavam da mesma coisa, a amizade forte com Adam, irmão de Alex.

Nem o vi e já o conheço, talvez não de verdade, mas todos as histórias superficiais conseguiam transmitir pra mim sua coragem e seu carinho pelos mais próximos.

 Um dia poderei conhecê-lo, e poderei comprovar todas as teorias que minha imaginação fértil criara sobre ele. Loiro como o irmão, talvez? O mesmo interesse pela música? Engraçado? Bonito? Droga... Deixar alguém como eu curiosa é cavar um buraco e me jogar dentro.

Com todos ao meu redor, pude sentir que cada um, com suas peculiaridades ou não, era único. Na forma de agir, pensar e até falar, oque os tornava interessantes para mim, me encantando cada um ao seu jeito. E mesmo sem me conhecerem, me deram a oportunidade de ter uma noite tão nova e maravilhosa.

Mas não podia falar tudo isso naquele momento, não era a hora ainda.

Minha SorteWhere stories live. Discover now