Estou enrolando Enzo mais de duas horas. Olho para meu prato já vazio na mesa do restaurante e espero o garçom vir retirar. A sobremesa ainda está para chegar, e apesar de todo meu silêncio, Enzo parece não se importar. Demos algumas voltas pela cidade para que ele pudesse se familiarizar por aqui durante sua enorme estadia. Mostrei a ele meus restaurantes favoritos. Enzo teria diversas opções. Era tudo por perto, não havia como se perder. Por último, já com fome e exaustos de trocar meias palavras, fizemos caminho de volta até muito perto do jornal - o restaurante onde eu almoçava boa parte dos meus dias - e desde então ele precisou atender uma ligação, provavelmente da mãe, e eu fingi estar muito ocupada digitando vários nadas na tela do celular, dando a desculpa de que mesmo tendo meu período de folga, ainda sim precisava resolver alguns problemas fora de hora.
"Espero que você não levante no meio da noite pra revisar uma matéria de acidente que precisa estar nos jornais por todas as bancas as sete da manhã."
"Lógico que não!" Reviro os olhos, apertando em teclas aleatórias, e largo o celular de volta dentro da bolsa. "Já basta todo meu esforço durante meu horário normal de trabalho."
Ele dá de ombros, e seu olhar se alegra. Um dos garçons retira à mesa enquanto outro coloca nossa sobremesa no meio. Avisei a Enzo sobre o tamanho, mas ele insistiu cegamente dizendo aguentar. E lá estava, no nosso meio, um pedaço enorme de brownie com sorvete por cima.
"Eu avisei." Aponto minha colher de sobremesa para ele e arrasto um pouco do doce para meu talher. "Quero ver se vai consegui comer tudo."
"Você vai me ajudar!"
"Vou te ajudar até onde eu aguentar." Empurro a bandeja de encontro à ele. "Vamos Enzo, é melhor dar colheradas maiores ou você vai ficar ai até terminar."
"Você dá esse tipo de castigo na Ana?"
"Bom, baseado no fato de que tem muita gente passando fome no mundo, e que qualquer que seja a coisa a gente paga caro com um imposto abusador, então sim." Dou de ombros e pego mais uma colher de doce, dessa vez mais cheia que da primeira vez. "Mas a essa altura a Ana já sabe o quanto ela aguenta comer."
"Você sabia que não é legal forçar uma criança comer mais do que ela aguenta?"
"Claro que eu sei, Enzo!" Evito bater minha mão na mesa como fiz mais cedo. Diferente do café, o restaurante está lotado até o teto. "Nunca obriguei ela a comer o que não aguentava, mas deixei que ela ficasse por horas de frente para o prato pensando no quanto ela estava desperdiçando. Acabei traumatizando um pouco, mas faz parte. Ela ta viva até hoje, e dá valor pra tudo."
"Traumatizar também não é legal."
"Caramba, não foi de um jeito ruim, é só um jeito de falar." Franzo o cenho nervosa. "Mas apesar de tudo acredito que fiz um bom trabalho."
"É. Acho que sim." Ele debocha e enche a boca de doce. Mastiga e só volta a falar quando engole. "Aliás onde ela está uma hora dessas?"
"Na escola."
É tudo o que digo. Estou tentando de tudo para que esse momento de pai e filha não ocorra de forma precoce. Ana não precisa lidar com o pai desse jeito. Ela precisa ser preparada. Não posso sair daqui e chegar com o pai dela de repente como se fosse um presente surpresa. Até que não seria uma má ideia se ele fosse como qualquer brinquedo novo que Ana deixasse de lado dias depois. Mas a questão aqui é mais intensa. Se trata de uma pessoa. Se trata do pai dela, e isso me assusta em proporções que até então eu desconhecia. O que um primeiro encontro tão imediato podia me custar? E se cada palavra que ele havia me dito não passasse de um disfarce para arrastar Ana para longe de mim e fazê-la acreditar que eu estava deixando com que ela fosse? Tento tirar todas essas ideias da minha cabeça, mas desde o momento que o reconheci foi inevitável não me sentir vulnerável e com medo.
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Minha decisão
ChickLitQuando algumas perguntas não conseguem ser respondidas, o que você faz? E se a resposta surgir de repente, você a deixa entrar? Desire passou por mal bocados a vida inteira. Criada apenas pela mãe, a garota viveu em meio as dificuldades, problemas e...