SEIS

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Eu estava sentado junto a uma jovem que não sabia o seu esquema muito bem.
— Para onde vai a Roteford nº 2900? — ela me perguntou.
— Tente encaixar no 33 — eu disse.
O supervisor falava com ela.
— Você disse que é de Kansas City? Meus pais são de Kansas City.
— É mesmo?
Então ela me perguntou:
— E que tal a Meyers, 8.400?
— Mande para o 18.
Ela estava um pouco acima do peso, mas era das boas. Deixei passar. Eu
estava cansado de mulheres por um tempo.
O supervisor estava parado de pé, bem perto dela.
— Você mora longe do trabalho?
— Não.
— Gosta do seu trabalho?
— Ah, sim.
Ela se virou para mim.
— E a Albany, 6.200?
— 16.
Quando terminei meu lote, o supervisor falou comigo:
— Chinaski, contei seu tempo naquele lote. Foram 28 minutos.
Não respondi.
— Sabe qual é o tempo padrão para aquele lote?
— Não, não sei.
— Há quanto tempo está aqui?
— Onze anos.
— Está aqui há onze anos e não sabe qual é o tempo padrão?
— Exato.
— Você carimba as cartas como se não desse a mínima.
A garota ainda tinha uma pilha cheia na frente dela. Tínhamos começado
nossas pilhas juntos.
— E você não parou de conversar com essa funcionária ao seu lado.
Acendi um cigarro.
— Chinaski, venha aqui um minuto.
Ele parou em frente às caixas de latão e apontou. Todos os funcionários
estavam carimbando bem rápido agora. Fiquei a observar o modo como moviam
freneticamente seus braços direitos. Até a gorducha estava sentando a mão.
— Vê aqueles números pintados na base da caixa?
— Sim.
— Aqueles números indicam o número de peças que devem ser carimbadas
num minuto. Uma pilha de sessenta centímetros deve ser carimbada em 23
minutos. Você ultrapassou o tempo em cinco minutos.
Ele apontou para o número 23.
— O padrão é 23 minutos.
— Aquele 23 não significa coisa nenhuma — eu disse.
— Como é que é?
— Quero dizer que algum cara veio e pintou esse 23 com uma lata de tinta.
— Não, não, esse tempo foi testado e retestado ao longo dos anos.
De que adiantava contestar? Não respondi.
— Vou ser obrigado a pôr você no relatório, Chinaski. Será julgado por isso.
Voltei e me sentei. Onze anos! Não tinha dez centavos a mais no meu bolso
do que quando entrara ali pela primeira vez. Onze anos. Embora cada noite
tivesse sido longa, os anos tinham passado rápido. Talvez por se tratar de um
serviço noturno. Ou por fazer a mesma coisa vez após vez. Ao menos com o
Stone eu nunca sabia o que esperar. Aqui não havia qualquer surpresa.
Onze anos como um tiro na cabeça. Eu tinha visto o emprego devorar os
homens. Eles pareciam derreter. Lá estava Jimmy Potts do Posto Dorsey. Da
primeira vez que cheguei lá, Jimmy era um cara musculoso em sua camiseta
branca. Agora estava liquidado. Colocava seu banco o mais próximo do chão
possível, e se agarrava para não cair. Vivia de tal maneira cansado que já nem
cortava o cabelo e usava as mesmas calças há três anos. Trocava as camisas
duas vezes por semana e caminhava bem devagar. Tinham-no assassinado.
Estava com 55 anos. Faltavam sete para ele se aposentar.
— Nunca vou conseguir — ele me disse.
Ou derretiam ou engordavam, enormes, especialmente na bunda e na
barriga. Era o banquinho, e os mesmos movimentos e a mesma conversa. E lá
estava eu, sofrendo de tonturas e dores nos braços, pescoço, peito, por toda parte.
Dormia o dia para conseguir descansar e estar apto ao trabalho. Nos fins de
semana, tinha de beber para esquecer a rotina. Eu pesava 83 quilos quando
cheguei. Agora estava com 101 quilos. A única coisa que você mexia por ali era
o braço direito.
Entrei no escritório do Conselho. Lá estava Eddie Beaver, atrás de sua mesa. Os
funcionários o apelidaram de “Castor Magrelo”. Tinha uma cabeça pontuda, um
nariz pontudo, um queixo pontudo. Era um tipo pontiagudo. Em todos os aspectos.
— Sente-se, Chinaski.
Beaver tinha alguns papéis na mão. Pôs-se a lê-los.
— Chinaski, você precisou de 28 minutos para acabar uma caixa de 23
minutos.
— Ah, não vem me aplicar essa papagaiada! Estou cansado.
— O quê?
— Eu disse, não me venha com essa papagaiada! Me deixe assinar esse
papel e voltar ao trabalho. Não quero ouvir sua lenga-lenga.
— Estou aqui para aconselhá-lo, Chinaski!
Suspirei.
— Tudo bem. Vá em frente. Vamos ouvir.
— Temos um cronograma a cumprir, Chinaski.
— Ô.
— E quando não se cumpre o cronograma, isso significa que alguém mais
terá de carimbar essas cartas por você. Isso significa horas extras.
— Você quer dizer que sou o responsável por essas três horas e meia a mais
que solicitam quase todas as noites?
— Olhe, você levou 28 minutos numa caixa de 23. E isso é tudo o que
interessa.
— Você sabe melhor do que eu. Cada caixa tem sessenta centímetros de
comprimento. Algumas caixas têm até três ou quatro vezes mais cartas do que
outras. Os funcionários agarram o que eles chamam de caixas “gordas”. Eu não
me importo. Alguém tem de pegar no pesado. Mas tudo o que vocês sabem é que
cada caixa mede sessenta centímetros de comprimento e que tem de ser
esvaziada em 23 minutos. Acontece que não arrumamos tudo de uma vez, é
preciso carimbar as cartas.
— Não, não, tudo isso já foi testado.
— Pode ser que sim. Mas eu duvido. Em todo caso, se você for cronometrar
o tempo de alguém, não o julgue por uma caixa. Até mesmo Babe Ruth errava
de vez em quando. Julgue um homem por dez caixas, ou por uma noite de
trabalho. Vocês usam essas coisas para mandar para a forca qualquer cara que
caia nas garras de vocês.
— Tudo bem, Chinaski. Você já disse o que tinha para dizer. Agora é a
minha vez: você levou 28 minutos numa caixa. Nós nos apoiamos nisso. AGORA,
se você for pego mais uma vez atrasado, será chamado para CONSELHOS
AVANÇADOS!
— Está bem, mas posso fazer uma pergunta?
— Prossiga.
— Suponha que eu pegue uma caixa fácil. De vez em quando eu pego. Às
vezes termino uma caixa em cinco ou oito minutos. Digamos que termine uma
caixa em oito minutos. De acordo com os padrões de tempo testados, eu teria
economizado quinze minutos aos Correios. Será, então, que posso pegar esses
quinze minutos e descer até o refeitório, comer um pedaço de torta com sorvete,
assistir tevê e voltar?
— NÃO! VOCÊ DEVE AGARRAR UMA CAIXA IMEDIATAMENTE E
COMEÇAR A CARIMBAR CARTAS!
Assinei um papel dizendo que fora aconselhado. Em seguida o Castor
Magrelo assinou minha dispensa, escreveu a hora e me mandou de volta para
meu banquinho para carimbar mais cartas.
Mas havia um pouco de ação. Um cara foi flagrado na mesma escadaria em que
eu tinha me trancado. Foi pego lá com a cabeça debaixo da saia de uma garota.
Então uma das garotas que trabalhava no refeitório reclamou que não tinha sido
paga conforme prometido, por um pouco de sexo oral que ela tinha praticado
com um gerente de seção e três carteiros. Demitiram a garota e os três carteiros
e rebaixaram o gerente a supervisor.
Foi quando botei fogo nos Correios.
Eu havia sido mandado para as correspondências de quarta categoria e
estava fumando um charuto, tirando um maço de correspondências de um
carrinho quando um cara se aproximou e disse:
— EI, SUAS CARTAS ESTÃO PEGANDO FOGO!
Olhei em volta. Ali estava. Uma pequena chama começava a se erguer
como uma cobra bailarina. Evidentemente, um pouco de cinza em brasa do
charuto tinha caído ali antes.
— Puta merda!
A chama se alastrou depressa. Peguei um catálogo e, mantendo-o esticado,
bati sobre o foco. Faíscas voaram. Estava quente. Tão logo apaguei uma parte,
outra pegou fogo.
Escutei uma voz:
— Ei! Sinto cheiro de fogo!
— NÃO SE SENTE CHEIRO DE FOGO — gritei —, SENTE-SE CHEIRO
DE FUMAÇA!
— Acho que vou dar o fora daqui!
— Foda-se, então — gritei —, DÊ O FORA!
As chamas queimavam minhas mãos. Eu tinha que salvar os Correios dos
Estados Unidos, todo aquele lixo de correspondências de quarta classe.
Finalmente, consegui controlar o incêndio. Usando o pé, empurrei a pilha
inteira de papéis para o chão e pisei no último foco de cinza vermelha.
O supervisor se aproximou para me dizer alguma coisa. Fiquei ali parado, o
catálogo queimado na mão, a esperá-lo. Ele me olhou e se afastou.
Depois disso, retomei a organização daquele lixo de correspondência de
quarta classe. Separava tudo que estivesse queimado.
Meu charuto tinha morrido. Não voltei a acendê-lo.
Minhas mãos começaram a doer e fui até o bebedor, coloquei-as debaixo
d’água. Não ajudou.
Encontrei o supervisor e pedi-lhe uma dispensa para ir até a sala da
enfermeira.
Era a mesma que costumava ir à minha porta perguntar:
— Qual é o problema agora, sr. Chinaski?
Quando entrei, ela disse a mesma coisa de novo.
— Lembra-se de mim, não é? — perguntei.
— Ah, sim, sei que o senhor teve umas noites realmente doentes.
— Ô — eu disse.
— Ainda há mulheres lá no seu apartamento? — perguntou.
— Sim. Há homens no seu?
— Tudo bem, sr. Chinaski, o que o traz aqui?
— Queimei minhas mãos.
— Deixe eu ver. Como queimou as mãos?
— Isso importa? Elas estão queimadas.
Ela começou a passar alguma coisa nas minhas mãos. Um de seus peitos
roçou em mim.
— Como aconteceu, Henry?
— Charuto. Eu estava parado perto de um carrinho da quarta classe. Deve
ter caído brasa ali dentro. As chamas subiram.
O peito voltou a roçar em mim.
— Mantenha suas mãos paradas, por favor!
Então ela apoiou todo o flanco contra mim enquanto espalhava uma pomada
em minhas mãos. Eu estava sentado num banco.
— Qual é o problema, Henry? Você parece nervoso.
— Bem... você sabe como é, Martha.
— Meu nome não é Martha. É Helen.
— Vamos nos casar, Helen?
— O quê?
— Quero dizer, quando vou poder voltar a usar minhas mãos?
— Pode usá-las agora mesmo se tiver vontade.
— O quê?
— Quero dizer, no trabalho.

Ela as enrolou com umas gazes.
— Sinto-me melhor — eu disse.
— Você não devia queimar as cartas assim.
— Era só lixo.
— Toda correspondência é importante.
— Tudo bem, Helen.
Ela voltou à sua mesa e eu a segui. Preencheu a folha de dispensa. Estava
muito bonita em seu pequeno chapéu branco. Eu teria de encontrar um jeito de
voltar aqui.
Ela me viu olhando para seu corpo.
— Muito bem, sr. Chinaski, acho que é melhor o senhor ir agora.
— Ah, sim... Bem, obrigado por tudo.
— Faz parte do serviço.
— Claro.
Uma semana depois havia placas de PROIBIDO FUMAR NESTA ÁREA em toda
parte. Os funcionários não podiam fumar, a não ser que usassem cinzeiros.
Alguém tinha sido contratado para fazer todos esses cinzeiros. Eram bacanas. E
diziam: PROPRIEDADE DO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS. Os
funcionários roubaram grande parte deles.
PROIBIDO FUMAR.
Sozinho, eu, Henry Chinaski, tinha feito uma revolução no sistema dos
Correios.
Então alguns homens apareceram e arrancaram todos os bebedores.
— Ei, veja, que merda esses caras estão fazendo? — perguntei.
Ninguém parecia interessado.
Eu estava na seção da terceira categoria. Fui até outro funcionário.
— Veja! — eu disse. — Estão levando nossa água embora!
Ele deu uma olhada na direção do bebedor e voltou a carimbar suas cartas
de terceira categoria.
Tentei com outros funcionários. Revelaram o mesmo desinteresse. Eu não
conseguia entender aquilo.
Pedi para que mandassem o cara do sindicato designado para minha área.
Depois de um longo atraso, eis que o sujeito apareceu — Parker Anderson.
Parker costumava dormir em um velho carro e se lavava e fazia a barba e
cagava em postos de gasolina que não trancavam seus banheiros. Parker tinha
tentado a vida de gigolô, mas fracassara. Depois disso, tinha vindo para a Central dos Correios, entrado para o sindicato, ido às reuniões dos sindicalistas onde
terminou por se tornar um dos cabeças. Logo já era um representante do
sindicato e depois foi eleito vice-presidente.
— Qual é o problema, Hank? Sei que você não precisa de mim para lidar
com seus superiores!
— Não venha dar uma de vaselina para cima de mim, baby. Escute, venho
pagando as taxas do sindicato há quase doze anos e nunca pedi porra nenhuma!
— Tudo bem, o que está pegando?
— São os bebedores.
— Os bebedores estão com problema?
— Não, caralho, os bebedores estão bem. O problema é o que estão fazendo
com eles. Veja.
— Veja o quê? Onde?
— Lá!
— Não vejo nada.
— É esta a verdadeira natureza do que me deixa puto da cara. Costumava
haver um bebedor ali.
— Então o levaram. E que porra isso importa?
— Olhe, Parker, não me importaria caso fosse um. Mas estão arrancado
todos os outros bebedores do prédio. Se não pararmos a ação deles agora, logo
estarão fechando até os banheiros e... bem... o que virá depois... não sei...
— Tudo bem — disse Parker —, o que você quer que eu faça?
— Quero que você mexa esse seu rabo e descubra por que os bebedores
estão sendo removidos.
— Está bem. Encontro você amanhã.
— E faça seu trabalho. Doze anos de taxas de sindicato são 312 dólares.
No dia seguinte tive de procurar o Parker. Ele ainda não tinha a resposta.
Também não a tinha no dia seguinte e no outro depois desse. Disse a Parker que
estava cansado de esperar. Dei-lhe um ultimato: mais um dia.
No dia seguinte, aproximou-se de mim no espaço em que fazíamos o intervalo.
— Está tudo certo, Chinaski, descobri o que está acontecendo.
— E aí?
— Em 1912, quando este prédio foi construído...
— Em 1912? Mas isso é mais de meio século! Não é de admirar que esse
lugar se pareça com o puteiro do Kaiser!
— Vamos, pare com isso. Escute, em 1912, quando o prédio foi construído, o
contrato exigia a instalação de um certo número de bebedores. Ao revisar o
documento, no entanto, os Correios descobriram que havia o dobro de bebedores
previstos no contrato original.
— Sim, tudo bem — eu disse —, mas que mal pode haver em termos o
dobro de bebedores? Os empregados só vão beber muita água.
— Certo. Mas os bebedores atrapalham um pouco a passagem. Ficam no
meio do caminho.
— E?
— Escute. Suponha que um funcionário dê uma trombada em um bebedor.
Suponha depois que ele arrume um advogado astuto. Imagine mais, que ele tenha
sido prensado contra o bebedor por um carrinho cheio de enormes sacos de
revistas.
— Agora entendo. O bebedor não deveria estar ali. Os Correios são
processados por negligência.
— É bucha!
— Está certo. Obrigado, Parker.
— Ao seu dispor.
Se ele tivesse inventado aquilo, era uma história que quase valia os 312
dólares. Já vi coisas bem piores publicadas na Playboy.
Descobri que a única maneira de evitar as tonturas era levantar de vez em
quando e dar uma caminhada.
Fazzio, um supervisor que cuidava do posto naquele momento, me viu
quando eu ia a um dos raros bebedores.
— Olhe, Chinaski, toda vez que te vejo, você está caminhando!
— Isso não é nada — eu disse —, toda vez que te vejo, você está
caminhando.
— Mas isso é parte do meu trabalho. Caminhar é parte do meu trabalho.
Tenho que fazer isso.
— Veja — eu disse —, também faz parte do meu trabalho. Tenho que fazer
isso. Se fico naquele banco mais tempo, termino escorregando em cima daquelas
caixas de latão e começo a correr em círculos, assobiando Dixie pelo cu e
Mammy’s Little Children Love Shortnin’ Bread pelo buraco da cabeça do pau.
— Tudo bem, Chinaski, esqueça.
Certa noite eu vinha pelo corredor, depois de escapulir até o refeitório para
comprar um maço de cigarros. E lá estava um rosto que eu conhecia.
Era Tom Moto! O cara com quem tinha estagiado nos tempos do Stone!
— Moto, seu filho da puta! — eu disse.
— Hank! — ele disse.
Trocamos um aperto de mãos.
— Ei, estava pensando em você! Jonstone está se aposentando este mês.
Alguns de nós vão dar uma festa de despedida para ele. Você sabe, ele sempre
gostou de pescar. Vamos levá-lo para um passeio num barco a remo. Talvez você
queira vir junto para jogá-lo da borda, dar-lhe um caldo. Arranjamos um lago
bem fundo.
— Não, caralho, não quero nem olhar para ele.
— Mas você está convidado.
Moto ria um riso estranho, que ia do cu às sobrancelhas. Então olhei para sua
camisa: uma insígnia de supervisor.
— Ah, não, Tom.
— Hank, tenho quatro filhos. Precisam de mim para o pão com manteiga.
— Tudo bem, Tom — eu disse.
Depois disso, me afastei.
Não sei como as pessoas resolvem essas coisas. Eu tinha que pagar uma pensão,
precisava de grana para beber, para o aluguel, comprar sapatos, camisas, meias,
todas essas coisas. Como todo mundo, precisava de um carro velho, de algo para
comer, todos os pequenos gastos em coisas supérfluas.
Como mulheres.
Ou um dia no hipódromo.
Com todas essas coisas enfileiradas e nenhuma rota de fuga, você nem
pensa nisso.
Estacionei o carro do outro lado da rua da Central e fiquei esperando o sinal
mudar. Atravessei. Empurrei a porta giratória. Era como se eu fosse um pedaço
de ferro atraído por um ímã. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Era no segundo andar. Abri a porta e eles já estavam lá. Os empregados do
Correio Central. Reparei em uma garota, coitadinha, que tinha apenas um braço.
Ficaria ali para sempre. Era como ser um velho bebum como eu. Bem, como
diziam os rapazes, você tinha que trabalhar em algum lugar. Então aceitavam o
que aparecesse. Essa era a sabedoria do escravo.
Uma jovem negra se aproximou. Estava bem-vestida e satisfeita com o
mundo ao seu redor. Eu estava feliz por ela. Eu teria enlouquecido nesse
emprego.
— Pois não? — perguntou.
— Sou funcionário dos Correios — eu disse — e quero me demitir.
Ela se inclinou para baixo do balcão e voltou a aparecer com um maço de
papéis.
— Todos esses?
Ela sorriu:
— Está seguro de como preenchê-los?
— Não se preocupe — eu disse —, sei o que fazer.
Era preciso preencher mais papéis para sair de lá do que para entrar.
A primeira folha que lhe davam era uma consideração pessoal,
mimeografada, do Diretor dos Correios da cidade.
Começava assim:
“Sinto muito que esteja terminando sua carreira nos Correios e... etc., etc.,
etc.”
Como ele podia sentir? Nem me conhecia.
Havia uma lista de perguntas.
“Você achou os nossos supervisores compreensivos? Foi capaz de se
relacionar com eles?”
Sim, respondi.
“Você descobriu nos supervisores algum tipo de preconceito em relação a
cor, religião, formação ou qualquer outro fator relacionado?”
Não, respondi.
Então havia uma que dizia: “Você aconselharia seus amigos a procurar
emprego nos Correios?”.
Claro, respondi.
“Se você tem alguma decepção ou reclamações a fazer sobre os Correios,
por favor, liste-as em detalhe no verso desta página.”
Nenhum descontentamento, respondi.
Então minha garota negra voltou.
— Já terminou?
— Terminei.
— Nunca vi ninguém preencher tão rápido esses papéis.
— Depressa — eu disse.
— Depressa? — perguntou. — O que quer dizer com isso?
— Quero dizer, o que temos de fazer agora?
— Por favor, passe por aqui.
Segui seu rabo por entre as mesas até um lugar quase nos fundos do prédio.
— Sente-se — disse um homem.
Levou algum tempo lendo e percorrendo os papéis. Então olhou para mim.
— Posso perguntar por que está se demitindo? Há alguma relação com as
medidas disciplinares adotadas contra o senhor?
— Não.
— Então qual é o motivo de seu pedido de demissão?
— Quero me dedicar a outra carreira.
— Outra carreira?
Ele me olhou. Eu estava a menos de oito meses de completar cinquenta
anos. Sabia o que ele estava pensando.
— Posso perguntar qual será essa sua “carreira”?
— Bem, senhor, vou lhe dizer. A estação de caça nas nascentes se estende
apenas de dezembro a fevereiro. Já perdi quase um mês.
— Um mês? Mas o senhor está aqui há onze anos.
— Tudo bem, então, joguei onze anos fora. Ainda consigo pegar de dez a
vinte mil em três meses de caça na nascente de La Fourche.
— O que o senhor faz?
— Capturo ratos almiscarados, nútria, marta, lontra... guaxinim. Tudo de que
preciso é de uma canoa. Pago vinte por cento do que capturar pelo uso da terra.
Recebo 1,25 pelas peles de rato almiscarado, três dólares por marta, quatro
dólares por martas superiores, 1,50 por nútria e 25 dólares por lontra. Eu vendo a
carcaça do rato almiscarado, que tem cerca de trinta centímetros, por cinco
centavos para uma fábrica de comida para gatos. Consigo 25 centavos pela nútria
despelada. Crio porcos, galinhas e patos. Pesco bagres. Não há nada como isso.
Eu...
— Esqueça, sr. Chinaski, já é o suficiente.
Enfiou alguns papéis na máquina de escrever e os datilografou.
Então ergui os olhos e dei de cara com Parker Anderson, meu cara no
sindicato, o bom e velho Parker, que fazia a barba e cagava em postos de
gasolina, dava-me agora seu sorrisinho malicioso de político.
— Está pedindo demissão, Hank? Sabia que você estava maquinando alguma
coisa há onze anos...
— Sim, estou indo para o sul da Louisiana e vou juntar uma boa quantidade
de riquezas.
— Eles têm um hipódromo por lá?
— Está de brincadeira? Tem o Fair Grounds, um dos mais antigos
hipódromos do país!
Parker tinha consigo um garoto branco — outro neurótico da tribo dos
perdidos —, e os olhos do garoto estavam cobertos de lágrimas. Uma enorme
lágrima em cada olho. Elas não caíam. Era fascinante. Já tinha visto mulheres se
sentarem e me olharem com aqueles mesmos olhos antes de enlouquecerem e
começarem a gritar sobre o grande filho da puta que eu era. Era evidente que o garoto tinha caído em uma das muitas armadilhas e que tinha ido correndo até o
Parker. Parker poderia salvar seu emprego.
O homem me deu mais um papel para assinar e, depois disso, me mandei
dali.
Parker disse:
— Boa sorte, meu velho — quando passei por ele.
— Obrigado, baby — respondi.
Não senti qualquer diferença. Mas sabia que muito em breve, como um
homem resgatado rapidamente das profundezas do mar, eu seria vítima de um
tipo de descompressão bem particular. Eu era como aqueles periquitos
desgraçados da Joy ce. Depois de viver na gaiola eu tinha saído para o ar livre e
voava — como uma bala em direção aos céus. Aos céus?
Comecei o processo de descompressão. Me embebedei e permaneci mais
bêbado que um gambá cagado no Purgatório. Cheguei a estar até com a faca de
açougueiro na garganta uma noite na cozinha, e então pensei, calma, meu velho,
sua garotinha pode querer que você a leve ao zoológico. Picolés, chimpanzés,
tigres, pássaros verdes e vermelhos, e o sol incidindo seus raios na cabecinha
dela, nos pelos de seus braços, pegue leve, meu velho.
Quando voltei a mim, estava na sala do meu apartamento, cuspindo no
tapete e apagando cigarros nos pulsos, dando risadas. Louco como a lebre de
Alice no País das Maravilhas. Levantei a cabeça e ali estava este aspirante a
médico. Entre nós, um coração humano boiava dentro de um jarro caseiro
colocado sobre a mesinha. Em volta do coração humano — que estava
etiquetado com o nome de seu ex-dono, “Francis” — havia garrafas de bourbon
e scotch pela metade, uma pilha de garrafas de cerveja, cinzeiros, lixo. Eu
pegava uma garrafa e engolia uma mistura dos infernos de cerveja e cinza. Eu
não comia nada havia duas semanas. Um infindável número de pessoas tinha ido
e vindo. Tinham ocorrido umas sete ou oito festas loucas onde eu não parava de
pedir:
— Mais bebida! Mais bebida! Mais bebida!
Eu estava em meu voo em direção aos céus; os outros só ficavam
conversando — e pondo seus dedos aqui e acolá.
— E aí — perguntei ao aspirante a médico —, o que você quer comigo?
— Serei o seu médico particular.
— Tudo bem, doutor, a primeira coisa que quero que você faça é tirar esse
maldito coração humano daqui!
— Nã, nã..
— O quê?
— O coração fica aqui.
— Olhe, cara, não sei seu nome...
— Wilbert.
— Muito bem, Wilbert, não sei quem você é ou como chegou aqui, mas
quero que leve o “Francis” com você.
— Não, ele fica com você.
Então ele pegou sua pequena mochila e a braçadeira de medir pressão e
apertou a borracha até inflá-la.
— Sua pressão é a de um cara de dezenove anos — ele disse.
— Quem se importa. Veja, não é contra a lei deixar corações humanos
espalhados por aí?
— Voltarei para pegá-lo. Agora respire fundo!
— Achei que os Correios iriam me levar à loucura. E agora tenho de
aguentar você.
— Quieto! Respire fundo!
— Preciso de um bom rabo jovem, doutor. É isso que está errado comigo.
— Sua coluna está fora de lugar em catorze lugares, Chinaski. Isso gera
tensão, imbecilidade e, muitas vezes, loucura.
— Grande merda — eu disse...
Não me lembro da saída daquele gentil-homem. Acordei no meu sofá às 13h10,
morte na tarde, e estava quente, o sol penetrando através de minhas cortinas
puídas para descansar sobre o pote no centro da mesinha. “Francis” tinha ficado
comigo a noite inteira, cozinhando em uma salmoura alcoólica, nadando na
extensão mucosa da diástole morta. Assentado ali no pote.
Parecia um frango frito. Quero dizer, um frango antes de sua fritura.
Exatamente.
Peguei-o e o coloquei no meu armário e o cobri com uma camisa rasgada.
Depois fui ao banheiro e vomitei. Terminei, grudei minha cara contra o espelho.
Havia longos pelos negros brotando de todo meu rosto. De súbito, tive que sentar
e cagar. Foi daquelas boas e quentes.
A campainha soou. Acabei de limpar a bunda, vesti umas roupas velhas e fui
até a porta.
— Olá?
Havia um cara jovem ali, longos cabelos loiros que pendiam em volta do
rosto, e uma garota negra que ficava rindo sem parar, como se fosse doida.
— Hank?
— Sim. Quem são vocês?
— Ela é uma mulher. Não se lembra da gente? Da festa? Trouxemos uma
flor para você
— Caralho, entrem.
Eles traziam uma flor, uma coisa laranja com uma haste verde. Aquilo fazia
mais sentido que muitas coisas, exceto pelo fato de que estava morta. Encontrei
um vaso, pus a flor nele, apanhei um garrafão de vinho e o coloquei sobre a
mesa de centro.
— Você não se lembra dela? — o garoto perguntou. — Você disse que
queria trepar com ela.
A garota sorriu.
— É uma belezura, mas não agora.
— Chinaski, como você vai se virar sem os Correios?
— Não sei. Talvez eu trepe contigo. Ou deixe você me comer. Diabos, não
faço a menor ideia.
— Você pode dormir lá no nosso apartamento.
— Posso olhar vocês dois treparem?
— Claro.
Bebemos. Eu havia esquecido seus nomes. Mostrei-lhes o coração. Pedi que
levassem aquela coisa horrível com eles. Não tive coragem de jogá-lo fora, o
estudante poderia precisar dele para um exame ou no caso de expirar o
empréstimo da biblioteca da medicina, algo do gênero.
E assim saímos para dar uma volta e vimos um show de nudez no chão,
entre bebidas, gritos e gargalhadas. Não sei quem tinha o dinheiro, mas acho que
ele tinha a maior parte, o que era bom para variar, e eu continuei rindo e
apertando a bunda da garota e também a cintura e beijando-a, ninguém dava a
mínima. Enquanto o dinheiro durasse, você durava.
Eles me levaram de volta de carro e ele se foi com ela. Entrei, disse adeus
da porta, liguei o rádio, achei uma garrafinha de scotch, bebi o que havia nela,
me sentindo bem, finalmente relaxado, livre, queimando meus dedos em
baganas de charuto, então fui para a cama, cheguei junto ao colchão, desabei,
caí sobre a colcha, dormi, dormi, dormi...
* * *
De manhã, ao acordar, a manhã seguia ali, e eu ainda estava vivo.
Talvez eu devesse escrever um romance, pensei.
E foi o que fiz.

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⏰ Última atualização: May 21, 2019 ⏰

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