SIBÉRIA, 27 DE JULHO DE 1989

568 37 16
                                    

Como de costume, o silêncio pelos corredores da base durante a noite era absoluto, por isso seu cuidado a mais para passar despercebida sem produzir nenhum ruído, não querendo perturbar os moradores das portas por que passava. Valerik já estava acostumada com missões onde erros não eram permitidos ou perdoados, mas daquele caso específico tinha um peso pessoal: quem estava em risco eram seus filhos, e isso ela não podia permitir.

A porta do casal de irmãos não se diferenciava em nada das dezenas daquele corredor, mas Valerik sabia que era aquela mesmo sem prestar muita atenção. Ambas as crianças dormiam tranquilas depois de um dia cheio de testes para a caçula, e treinamento para o mais velho, e ela esperava que o sono deles realmente estivesse pesado, para que não a vissem entrar e sair. Apenas uma luz fraca fingia iluminar o quarto, já que não cumpria aquele papel muito bem - apenas a parte de Dominik recebia um pouco de luz, o que deixava a parte de Petr quase que na completa escuridão.

Seu maior problema ali era Dominik: o que tinha ela de pequena, também tinha de encrenqueira e, mesmo até gostando dessa característica da filha, hoje mais do que nunca precisava que ela ficasse em silêncio, ou ambas estariam com sérios problemas. Já prevendo aquilo, Valerik tinha uma pequena seringa escondida em seu uniforme, na esperança que aquele fraco sonífero tivesse efeito no corpo pequeno e desprotegido de sua filha. O bebê choramingara um pouco ao sentir algo estranho perfurar sua pele, mas logo seus olhos grandes giraram para trás e se fecharam. Valerik sorriu aliviada: aquilo deveria ser o suficiente para pelo menos metade do trajeto, e então a criança poderia gritar o quanto bem entendesse.

Mesmo com as dezenas de aquecedores pela base para tentar amenizar o frio intenso mesmo naquela época do ano, todos ainda precisavam caprichar nas várias camadas de roupa grossa para se manterem aquecidos, e o bebê não era uma exceção. Em razão disso, Valerik não precisava se preocupar com vestimentas para ela por hora, apenas quando chegasse em seu destino, já que ela sim estaria uma temperatura digna de verão.

- Mama?

A voz baixa e infantil fez com que seu sangue gelasse nas veias quando esticou os braços para pegar o bebê adormecido no colo, mesmo sabendo a quem aquela voz pertencia. Seu lado mais medroso temia que Krigor aparecesse às suas costas, rindo da sua ingenuidade por acreditar que podia planejar algo por suas costas. Seu medo era em razão exatamente por não saber os limites do homem: uma vida inteira lado a lado, e ela ainda não sabia do que o marido era capaz. Só que no fundo ela preferia que fosse Krigor a abordando, não seu filho com o rosto amassado e olhos sonolentos.

Petr tinha o sono mais leve do que qualquer um, já que ele que devia avisar caso algo estivesse errado com sua irmã, ou apenas fazer com que ela ficasse quieta quando resolvia começar a berrar no meio da noite. Valerik deveria ter imaginado que qualquer movimento faria com que o garoto despertasse, e nem chegara a pegar o bebê no colo antes que isso acontecesse. Com as mãos ainda suspensas sobre o berço, ela se virou para a cama do filho, sua visão aguçada até que identificando sua pequena silhueta no meio da escuridão quase completa do quarto. O cabelo que já precisava cortar há semanas praticamente todo em pé, o semblante confuso enquanto coçava um olho.

- Volte a dormir, meu amor – pediu ela, mesmo duvidando que o garoto fosse obedecer tão facilmente. Petr não era idiota. Já cansara de ouvir o pai ralhando com ela sobre ficar entrando no quarto das crianças sem necessidade, e a mãe estar com seu uniforme completo de missão que ela quase não usava era mais do que uma prova de não deveria estar ali.

- O que você tá fazendo? – perguntou Petr no meio de um bocejo, se sentando melhor na própria cama, as perninhas protegidas por uma grossa calça balançando no ar – Por que tá de uniforme?

- Mamãe vai ter que dar uma saída, querido – suspirou Valerik, desistindo do bebê por alguns instantes para se ajoelhar em frente ao filho, tomando seu rosto amassado em suas mãos enluvadas – E eu vou demorar um pouquinho para voltar.

- E vai levar a Nikky? – a mulher assentiu, fazendo com que o garoto ficasse desconfiado. Tinha algo errado, e ele podia sentir isso sem dificuldades. Sua mãe estava tentando de qualquer forma maquiar aquilo, mas ele ainda continuava a sentir – E não vai me levar, não é?

- Agora eu não posso, Pete – contou ela. Valerik tentara sorrir para o filho, mas o reflexo que provocara em seu rosto deixara claro que não estava enganando ninguém – Eu só posso proteger um por vez.

- Mas eu posso ajudar – retrucou o garoto, ofendido – Você avalia meus treinos, sabe que sou capaz.

- É claro que eu sei, дорогая... – concordou Valerik, apertando afetuosamente as bochechas do filho, que reclamou baixo – Mas eu vou voltar por você, entende? Se não for eu, vai ser a Nikky.

- A Nikky?! – estranhou o garoto, rindo em descrença, até chegando a olhar para o berço para ter certeza que falavam da mesma pessoa – Ela não sabe nem andar ainda!

- Tenha fé em sua irmã, quem sabe um dia ela não precise saber que você acredita nela, hm? – pediu a mulher, puxando o filho para um abraço, algo que ele estranhou apenas nos primeiros instantes, e depois se rendeu aos braços quentes da mãe – Preciso que acredite em mim também, pode ser?

O garoto concordou com a cabeça, mesmo com algo dentro de seu peito tentando lhe dar um aviso, o alertando de um perigo próximo. Antes que Petr pudesse dar atenção àquilo, sentiu algo perfurando o meio de suas costelas e seu corpo ficar mole, logo sua visão também sendo comprometida. O último sentido a abandoná-lo foi a audição, sendo capaz de ainda ouvir mesmo sem muito certeza sua mãe o deitar de volta na cama na posição que ele mais costumava ficar, seguindo para o berço em seguida, e fechando a porta com cuidado ao sair.

O silêncio absoluto que seguiu ele nunca saberia se era por ter entrado na inconsciência, ou por estar completamente sozinho no quarto.

The Real Side - LongingOnde histórias criam vida. Descubra agora