Capítulo 1

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 Nelly

Ouvi gritos, muitos gritos... Senti uma sensação de estar sufocando, como se estivesse me afogando. Tentei abrir meus olhos, mas era como se eu estivesse sendo levada para o abismo mais profundo. Estava escuro e sentia muito medo. Tentei pedir socorro e não consegui. Não vou conseguir me salvar. Ouvi um grito de dor, estridente, e dessa vez consegui respirar. Dei um pulo em minha cama e percebi que o grito forte que ouvi era o meu. Vi que estava completamente molhada de suor. E, além disso, senti dois braços me abraçando e imediatamente me acalmei, pois reconheci o calor que me envolvia e me senti segura, porque eram os braços de meu pai, o meu porto seguro. Senti seus olhos em mim e ouvi sua voz suave me dizendo:

— Acho que terei que contar novamente aquela história linda que você tanto ama, Nelly. — Senti as lágrimas molharem o meu rosto e encostei-me ao peito de meu pai ouvindo sua doce voz.

— Era uma vez...

— Não pai, sem "Era uma vez". Você sabe.

Meu pai passou as mãos calejadas em meu rosto. Porém, com um toque bem leve, limpou minhas lágrimas e continuou a sua história.

— Ok, preciosa. Vamos lá.

"No dia 23 de dezembro de 1990, nasceu o meu presente de Deus. Estávamos esperando a sua chegada, Nelly, para meados de janeiro, mas você chegou para completar a minha vida neste dia. Decidimos, eu e sua mãe, que não queríamos descobrir o sexo do bebê na ultrassonografia, por isso seguramos a nossa ansiedade. Confesso que ansiava por um menininho. Mas, como muitos dizem por aí, o que viesse seria bem-vindo."

 "Estávamos fazendo compras no supermercado, e sua mãe parecia cansada. A fila do açougue estava enorme. Eu estava distraído, olhando as peças de carne em exposição no refrigerador, já pensando no que preparar para o Natal, quando senti duas mãos apertarem o meu braço com força. Olhei para o meu lado e sua mãe estava estranha, vermelha. Ela só me olhou e disse: 'Senti algo diferente. Acho que nosso presente chegará mais cedo'. Ao ouvir isso, eu sorri. Era como se meu mundo estivesse prestes a ficar completo. Olhei para o outro lado e vi que minha mãe estava emocionada. Dona Laura seria avó outra vez. Deixamos sua avó passando as compras no caixa e seguimos para a casa de sua tia que era próximo do local onde estávamos. Lá, sua mãe se dirigiu ao banheiro. Ao sair, ela me olhou com carinho. E ouvi as palavras que tanto almejava: 'Vai nascer'. Como sua irmã já estava na casa de sua tia, passamos em casa e pegamos a bolsa de sua mãe, do bebê e as lembranças. Depois fomos direto pra maternidade. Não sei de onde saiu tanta força, minha filha, porque sua mãe entrou em trabalho de parto às 15h, do dia 22; e você só nasceu no dia 23, às 12h45."

 Meu pai deu uma pausa na história, e um sorriso gostoso surgiu em seus lábios. Foi um sorriso com um misto de alegria, saudade e, por fim, dor. Ele suspirou e retomou a narrativa.

 — Preciosa, eu lembrei-me de algo que há muito tempo não me vinha à mente. Sua mãe já estava com quase 20 horas de dores, quando o médico desistiu de um parto normal e pediu para que a enfermeira preparasse a Sara para o parto. O médico sorriu e disse que tudo daria certo, e que logo nos encontraria no centro cirúrgico. Só iria almoçar rapidinho. Olhar para o rosto de Sara naquele instante foi engraçado. Tive que conter o riso e ver minha, então, mulher quase se lançar em cima do doutor e bater nele. Imagina uma mulher com dores de praticamente minuto em minuto e sem comer o dia inteiro?

 Nós dois caímos na gargalhada. Ainda em meio a sorrisos, a porta de meu quarto foi aberta. E uma criatura descabelada e linda se aconchegou ao meu lado, me abraçando. Gabriela. Minha irmã. Meu refúgio. Então, papai prosseguiu sua história:

 — Você sempre teve um ótimo pulmão, Nelly. Ouvir seu choro ao nascer me trouxe o sentimento de finalmente estar realizado. E ao ouvir que era mais uma menina, vi nos olhos de sua mãe, o medo. A tranquilizei somente com um olhar e sorriso sem medidas. Ao te receber nos braços e abrir aquele pacotinho rosa, vi uma princesa branquinha, com os lábios vermelhos e que, ao envolver com bastante força nas mãos o meu dedo indicador, abriu seus lindos olhos e somente uma palavra saiu de minha boca: "Preciosa". E levo comigo esta palavra até hoje. Vocês duas, são meu mundo. Gabi, o meu tesouro; Nelly, minha preciosa. Fim da história.

 Depois do relato, nós três estávamos aos prantos.

 Depois de nos recuperarmos, fomos obrigadas a dormir. Nem parecia que éramos duas mulheres adultas — Gabi tinha 28 anos e eu 23. Ela me pediu para dormir com ela, porque era a nossa última noite juntas. Gabriela e suas loucuras... Há quase cinco anos, ela não morava mais conosco. Amanhã será um dia especial para ela. Seu sonho de uma vida inteira se realizará, porque se casará com seu noivo lindo, Nathan. Gabi sempre dizia que ela era a mulher mais sortuda do mundo por ter encontrado sua metade, ou seja, a pessoa certa. Porém, eu pensava que Nate é que era o sortudo por ter Gabriela. Ela era amiga, companheira, sábia, um pouco ciumenta. Mas eles se completavam. Mesmo não tendo os mesmos sonhos de Gabi, amanhã eu estarei lá e sei que minha maquiadora terá que caprichar, pois vou chorar igual a um recém-nascido.

 Abracei Gabi, sentindo que ela estava preocupada, nervosa e tentei passar confiança pra ela. Passei as mãos em seus cabelos inúmeras vezes e cantei baixinho em seu ouvido. Logo senti sua respiração suave e percebi que pegou no sono e acabei dormindo junto. Amanhã seria um grande dia.

 Senti algo tão delicado tocando meu rosto e um grande sorriso surgiu em meus lábios, pois reconheci de quem vinha esse toque tão gostoso. Abri meus olhos e encontrei a coisa mais doce que tinha na vida. Minha pequena luz. Luísa. Minha sobrinha amada, fruto do amor sem medida de Gabi e Nate. Peguei-a em meus braços e lhe cobri de beijinhos, ao mesmo tempo que fazia cócegas em sua barriguinha e arrancava-lhe doces gargalhadas, o que acabou despertando sua mãe que estava dormindo ao meu lado. Em seguida, Luísa pulou para os braços de sua mãe e a abraçou forte, trazendo lágrimas aos meus olhos. Será que um dia terei algo assim? Um amor incondicional? Sequei minhas lágrimas e vi novamente aqueles olhos de um azul tão puro como os de seu pai, me olhando com cara de quem tinha algo a me dizer.

 — Minha pequena luz, o que você quer?

 — Tia Nelly, eu estou tão fraquinha, tão molinha. Eu quero chocolate quente e bolinho de chuva com açúcar. Você faz, tia Nelly? Por favor, por favor... Olha como eu estou fraquinha...

 Olhei para Gabi, e nós duas não aguentamos. Começamos a rir muito alto, que papai veio correndo ao nosso quarto querendo saber o que estava acontecendo. E acabamos contando pra ele a cena que Luísa acabara de protagonizar.

 — Gabriela, minha filha, eu já disse, menos novelas mexicanas. Olha no que dá. Minha neta, a rainha do drama. E logo cedo. — Caímos novamente na gargalhada.

 — Vou sentir falta disso! — disse Gabi.

 — Meu Deus, Gabi. Papai tem razão. Ô, dramalhão mexicano, hein? Você mora ao lado. Afinal, Nate comprou a casa ao lado da nossa. Vocês já moram juntos há quase cinco anos.

 Ela deu um sorrisinho leve e me tirou da cama.

 — Não brigue comigo, Nelly. Hoje é o meu dia especial. Então, tira o seu traseiro desse quarto e vai cozinhar nosso café da manhã, mulher.

 — Ok, suas loucas.

 Peguei a minha pequena luz nos braços e cheirei seus cabelos. Ela repetiu o meu gesto. Olhei-a nos olhos e disse que vou deixá-la fortinha. Ela fez o que mais amo. Passou o narizinho dela no meu e depois deu um beijinho no mesmo local. Disse-lhe que iria realizar seus desejos. Até mesmo por que, se eu não fizesse, coitada da minha sobrinha, porque minha irmã e a cozinha eram inimigas mortais!

 Deixei Gabi e Luísa no quarto e saí com papai para iniciar mais um dia com a família que era o meu mundo.

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