O BEIJO DE UM ANJO

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A noite era quieta apesar dos estalos da madeira sendo tocada pelas chamas no centro da fogueira. As estrelas brilhavam refletindo nos expectantes olhos dos jovens e idosos reunidos ao redor do velho cigano que segurava o violino.

Com uma nota tímida ele quebrou o silêncio. O som viajando no vento com a graça de uma folha dançando livre no ar.

“Há muito, muito tempo atrás, uma filha do vento vivia em isolação congelada. Perdida no branco infinito e entre as árvores mortas.”

O velho homem falou, diminuindo o som do violino até a melodia se misturar com o ambiente. Olhos fechados, ele se movia com cada varrida de sua mão sobre as cordas do violino. Levado pelas notas e pela história que ele estava prestes a contar.

“Do outro lado da grande floresta congelada, havia um guerreiro enviado pelos Deuses para nos salvar do mal.”

As chamas estremeciam e diminuíam à medida que a melodia tomava uma virada para um ritmo mais vívido. Após uma longa pausa, uma menina de longos cabelos negros como a noite e olhos castanhos se virou para trás. As outras crianças e adultos estavam distraídos e não notaram ela se levantar e se distanciar deles.

“As trevas ameaçavam cair sobre nós e a eterna noite prometia trazer o fim para a humanidade.” O velho cigano continuou, seus olhos ainda fechados, como se estivesse vendo a cena se desenrolar sob suas pálpebras.

Com suas espadas, os Deuses guerreiros traziam o eterno descanso para os corpos e a punição para as almas de nossos carrascos. Eles lutavam pela luz, combatendo a noite eterna e nos salvando dos demônios que ameaçavam devorar nossas almas.

Em uma de suas batalhas, o guerreiro caçador, o mais corajoso e temido de todos os deuses guerreiros, teve seu rumo alterado pelo destino. Por entre os labirintos das árvores congeladas e montanhas brancas ele avistou a filha do vento.

Em um instante a linha da vida dos dois se alterou, e em seus corações os dois sabiam que nada seria como era antes. Com apenas um toque o guerreiro devolveu vida à filha do vento, trazendo de volta a esperança que a muito perdera entre o infinito branco das montanhas que por longos anos lhe serviram de prisão. Com apenas um olhar, a filha do vento soprou uma alma para dentro do guerreiro caçador o fazendo ver um mundo novo que se escondia diante de seus olhos. Assim como o vento alimenta a chama, os dois se completavam.  Mas assim como o destino da chama, seus destinos eram fadados à tragédia.

O guerreiro manteve sua vida dupla, seguindo seu coração e mantendo sua cabeça sobre o que era certo. Mas a união deles não era bem vinda. A união de um ser celestial e um ser terreno era proibida pelos Deuses, e punido com a morte. Somente os impuros quebravam a lei e como resultado, pagavam com a vida e a alma por seus erros.

Eles sabiam de seus atos, mas como algo que parecia tão certo poderia ser tão errado? Como a união de dois seres que se amavam com alma e coração poderia ser punível com a condenação eterna?

Como era de seu dom e maldição, a filha do vento havia visto por entre as janelas do tempo qual seria o destino reservado para os dois. Seus olhos derramavam as lágrimas de quem sofre pelo que não pode mudar. Seu coração sangrava pelas provações do tempo que teria que suportar. Mas seu amor era grande demais para transbordar a tristeza que a realização de seu futuro traria para seu amado. Desta maneira, ela decidiu manter suas visões para si.

Quando a lua nasceu, o guerreiro recebeu a noticia de que os Deuses estavam sendo atacados por exércitos de demônios guiados pelos mortos que andam. Naquela noite a lua se banhou em sangue. Bravos guerreiros encontraram seu fim nas mãos de seus inimigos.

 A batalha parecia perdida até que o sol nasceu banhando o campo de batalha com sua luz, e os inimigos se desfizeram em chamas diante dos olhos do exército dos Deuses. Eles mal acreditavam em seus olhos e festejaram o fim da noite e nascimento de um novo dia como jamais haviam antes.

Durante os gritos de vitória, o guerreiro caçador sentiu seu peito apertar e o vento o chamar com alarde e desespero.  O guerreiro se jogou aos céus e foi para junto de sua amada, mas ele havia chegado tarde demais. Quando seus pés tocaram o chão, a neve era carmim e o vento chorava de dor e lamento ao seu redor. Ele tentou salvá-la, mas já não havia o que fazer. Seu coração se quebrava dentro de seu peito com o som de mil trovões e ele deixou sua tristeza derramar sobre seu rosto.

O sorriso nos lábios da filha do vento que jazia em seus braços era triste e melancólico em seus lábios azuis, mas o guerreiro não suportava a idéia de deixar a alma da amada perambular sem destino pelo rio da almas. Ele sabia que o preço a pagar pela união dos dois era a eterna danação da alma de sua amada, então ele tomou seus lábios pela última vez e colheu sua alma para dentro de si.

“Os antigos dizem que o guerreiro caçador segue em sua busca por vingança pelo traidor responsável pela morte de sua amada, e que suas almas só terão descanso quando sua caçada terminar.”  O velho cigano conta com voz grave, pesar preenche cada uma de suas palavras e ele ignora os suspiros das ciganas mais jovens que claramente interpretam o conto como uma história de amor.

Longe da fogueira a pequena cigana de cabelos negros observa o homem que parece absorto em seu trabalho de talhar um pedaço de madeira com seu punhal.

“O que faz longe de seus pais? Não tens medo de se perder na floresta, pequena?” Ele pergunta sem retirar os olhos da lâmina.

Ignorando as perguntas ela toca o rosto dele com suas pequenas mãos o fazendo encarar seu olhar. Ele sorri, sabendo o que a garota queria dizer. Ela havia nascido sem o dom da fala, mas ele a escutava.  Eles tinham um segredo, mas ela nunca iria contar.

Com seus olhos esverdeados ele devolveu a ela suas palavras e com um sorriso ela respondeu em pensamento.  Eu prefiro quando você conta as histórias.

Ele sabia de que histórias ela falava, e ele automaticamente volta seu olhar para o velho cigano que agora o observa. Os olhos esverdeados do guerreiro se prendem aos olhos azuis do velho cigano e décadas de história se passa entre o olhar dos dois.

Embora o tempo tenha poupado o guerreiro, em seus olhos havia o peso do passado e das memorias que não se calavam.

Já lhe contei sobre a vez que encontramos os filhos da lua? Ele pergunta em pensamento e ela abre um largo sorriso em resposta. Acredito que podemos começar por essa então.

Ela se senta à seus pés e ele começa a contar a história que somente ela escuta. Mas eles não estão sozinhos, pois não muito longe dali um par de olhos observa o guerreiro caçador. Olhos que reluzem fogo, sangue e a promessa de sofrimento infinito em seu interior.

                                                                           ~FIM~ 

A Queda de Um Anjo - Livro 1 da Série AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora