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"Susto na colheita: em vez do cupuaçu, cai a casa de vespas." Aníbal Beça

Gabriel

— Fala, parceiro — Daniel entrou em meu escritório, mas nem isso foi capaz de desfazer o feitiço que prendia meus olhos à tela do notebook. Tinha recebido aquelas imagens alguns minutos atrás, assistira repetidas vezes, e via meu mundo desmoronar em um eco doloroso. — Acabei me atrasando um pouco — ele continuou —, o trânsito no Anel estava uma merda...

Preso num beco escuro de raiva e consternação, não respondi, mas pela visão periférica notei que ele me observava intrigado.

— Caramba, aconteceu alguma coisa? — perguntou com cautela. — Que cara de enterro é essa?

Pensei em responder que estava assistindo ao sepultamento da minha família, mas as palavras impronunciáveis eram como espinhos, que eu me obriguei a tragar de volta, engolindo a dor. Senti sua aproximação e, embora não quisesse compartilhar minha humilhação com mais ninguém, não tive forças para fazer objeção.

A imagem em preto e branco não era muito nítida, mas sem dúvida Daniel podia ver a figura feminina, esguia e nua, que deslizava com graça felina através de um cômodo, cabelos escuros escorrendo em generosas ondas pelas costas eretas.

— Uma mulher pelada? — ele pareceu pensar em voz alta e se aproximou. — Essa joia... Não é a...

Apesar da imagem granulada, o desenho da gargantilha sobre o colo feminino era característico, inconfundível. Daniel tinha fascinação por pedras preciosas e joias, certamente tinha se fixado naquela, não a esqueceria jamais.

— Sim... — Pressionei as pálpebras com os dedos e exalei. — É ela, a minha... — traguei saliva relutando em pronunciar as palavras — a Désirée — confirmei a pergunta silenciosa, sentindo um profundo cansaço.

— Agora que você fala, porra?! — Daniel deu as costas ao monitor e eu ri sem humor pela ironia da situação; a nudez da mulher que desfilava como uma prostituta leiloando o próprio corpo não condizia com o pudor do meu amigo.

Daniel pareceu ler meu pensamento e voltou a se aproximar. Eu continuei imutável, enquanto um homem seminu aparecia na tela e a pegava pela cintura, tirando-a do chão e a beijando. A minha esposa.

— Para de olhar essa porcaria! — De súbito Daniel se interpôs entre mim e a tela, fechando o notebook rapidamente.

A imagem se esvaiu, mas aquela dor atroz ainda ecoava violentamente dentro de mim e por um instante pensei que fosse desmoronar ali mesmo, na frente do meu amigo.

— Ela estragou tudo — sussurrei. — Acabou com tudo, destruiu nossa família.

— Merda... — ecoou meus pensamentos. — O que vai fazer agora? — Daniel se pôs ao meu lado.

A dor conferia nuances duras, incomplacentes e aniquiladoras, aos meus pensamentos, a mente e a visão tingidos de vermelho enquanto uma chama exaltada impelia a paixão que me movia em tudo o que eu fazia... Eu sabia o que desejava fazer, mas Désirée não era um desconhecido qualquer, era a mãe dos meus filhos, e nessas circunstâncias nem eu era capaz de prever que atitude tomaria. Uma certeza, no entanto, eu tinha, e a realidade nua e crua era essa: Désirée já tinha decidido, unilateralmente, o destino da nossa família. Fim.

Afastei o rosto e esvaziei os pulmões tentando me livrar do veneno que me corroía por dentro.

— O que vai fazer? — ele repetiu e sua voz me tirou dos pensamentos.

Devastado, voltei a exalar.

— Não sei, cara, não sei... — respondi pressionando as têmporas com os dedos.

— Como conseguiu esse vídeo? É recente? Conferiu a data da gravação?

— Não viu o colar no pescoço dela? — perguntei me referindo à última joia que havia dado àquela... — Rilhei os dentes, relutante em proferir a única palavra com que conseguia qualificar a mãe dos meus filhos naquele momento.

Daniel balançou a cabeça, o olhar penalizado, compreendendo que a joia denunciava de modo cabal o mau-caratismo, para não dizer coisa pior, da Désirée. Por que, meu Deus, por que ela havia feito aquilo? O que seria dos nossos filhos agora?

— Gabriel, venha comigo para minha casa. — Meu amigo segurou meu ombro com uma mão. — Lá nós conversamos, você pensa com calma sobre tudo isso e decide o que fazer.

— Decidir? Decidir o que, porra? Ela já decidiu por mim. Eu quero aquela mulher fora da minha casa o mais breve possível; nem quero ver a cara dela; quero a Désirée longe da minha vida, dos meus filhos! — deixei os instintos mais selvagens falarem por mim.

— Você sabe que as coisas não funcionam assim — ponderou. — Ela tem direitos, cara.

— Direito a que, depois do que fez?

— Direito de conviver com os filhos, para começar. E isso não é você que decide.

Estreitei os olhos odiando os ataques de sensatez do meu amigo. Eu não queria ser sensato, eu queria pegar meu carro, dirigir rápido para casa e chutar aquela mulher para fora sem contemplações.

— Odeio quando você tem razão — resmunguei entre dentes.

— De qualquer maneira vocês têm que conversar. — Daniel deu alguns passos até parar em frente a minha mesa. — Se couber perdão, você vai saber depois de esclarecer tudo. — Um momento de silêncio, e ele continuou. — Só tente não... fazer besteira. Pense nas crianças, cara. Não vá perder a razão.

Assenti, embora por dentro estivesse estalando em chamas e desmoronando pouco a pouco.

— Não quer mesmo ir lá pra casa?

— Não — sussurrei.

— Vou ficar mais um tempo aqui com você, então. — Segurou o espaldar da cadeira fazendo menção de se sentar.

— Pode ir — dispensei.

— Não, vou ficar...

— Vai, porra — ordenei sem tirar os olhos da mesa escura. — Quero ficar sozinho.

— Mas...

— Fora daqui, Daniel, já falei que quero ficar sozinho.

— Tem certe...

Elevei o olhar, fazendo-o engolir as palavras.

— Vou ter que chutar a porra da sua bunda pra fora daqui? — perguntei adotando um tom colérico, o olhar incisivo que eu usava quando queria intimidar alguém.

Não que eu precisasse fingir, estava mesmo possesso e precisando de um tempo a sós para ruminar toda aquela merda que não me descia.

— Está certo, eu vou — anuiu e meteu as mãos nos bolsos, aquela postura que ele sempre adotava quando se sentia impotente.

Ótimo. Meu problema não tinha solução, e eu não precisava de uma galinha poedeira me rodeando.

— Mais tarde ligo para saber como você está e... Tente não agir feito uma porta. Para o bem dos seus filhos.


O que ela roubou de mim (antigo Roubou a Noite) - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora