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"Creio que quase sempre é preciso um golpe de loucura para se construir um destino." 


Gabriel

Entrei no carro e dirigi para o lugar a que costumava ir quando queria esfriar a cabeça, um haras na região. Uma ampla área do vale, parque banhado por uma extensa queda d'água, um rio caudaloso cinzelando pedras escuras, vastos campos muito verdes.

Estacionei, saltei e, sentado no banco do passageiro, troquei os tênis por botinas. Expandi os pulmões. O cheiro de couro, feno e esterco seco golpeou minhas narinas, devolvendo a paz ao meu espírito instantaneamente. Vesti as perneiras e segui para a estrebaria, onde deixava meu cavalo.

— Paulinho — chamei ao avistar o cavalariço, que parecia distraído penteando a crina de um alazão.

— Seu Gabriel... Não sabia que o senhor tinha treino hoje.

— Não tenho... — Observei as redondezas. — Só quero dar uma volta por aí com o Shadow — eu me referia a meu cavalo. — Já deu banho nele?

— Já dei, sim senhor — disse deixando de lado a escova com que penteava o cavalo. — Vou selar aquele moço agora mesmo...

— Pode deixar, eu cuido disso. Está tudo lá?

— Está, sim senhor. É bom dar uma olhada nos cascos — avisou. — Lourenço ainda não lavou a estrebaria.

Enquanto me afastava em direção às baias, caminhei mais devagar, observando casualmente os boxes. Ele já estava com a cabeça para fora, como se me esperasse.

Ao me aproximar, acariciei seu pescoço, a pelagem mais negra que a asa de um corvo. Shadow tinha uma aura sombria, um ar soturno; seus olhos grandes e desafiadores metiam medo.

Abri a porta e o conduzi para fora.

— Ôa, calma, parceiro — murmurei puxando o cavalo pelo cabresto e apreciando seu porte imponente.

Depois de escová-lo, verifiquei e limpei os cascos, então comecei o processo de selá-lo. Cuidar do animal drenava a tensão que retesava meu corpo, em poucos minutos eu já sentia os músculos relaxarem. Murmurando baixinho, fiz que ele ficasse parado e estiquei o braço para alcançar os acessórios num gancho, notando o cavalo inquieto. Ele não gostava de ficar exposto à cabeça dos vizinhos, que costumavam morder, mas normalmente já era arisco. Com esse gênio endiabrado, seria magnífico no turfe.

Saí da cavalariça no lombo de Shadow. Deixei que ele se aquecesse passeando pelos campos gramados do haras, mas custava a conter seus ímpetos. Estranhamente o cavalo não queria saber de poupar energia, parecia ter absorvido meu estado de espírito e desejar fugir dele. Então o espaço ficou pequeno para nós dois e deixamos a estância a meio galope.

Logo soltei as rédeas do garanhão, deixando que ele extravasasse a ansiedade junto comigo, mas, ao avistar um monte de terra na estrada, fiz Shadow reduzir a marcha. Abri a rédea e usei a perna para me comunicar com o animal, fazendo-o desviar-se. Ele era bem treinado para saltar obstáculos naturais, mas eu não arriscaria nosso pescoço sem saber o que havia do outro lado.

De novo a meio galope, notei que a parede natural que cercava aquele trecho da estrada a minha direita se desmanchava formando um barranco. Depois de passar o monte, percebi uma trilha que descrevia gradativamente a elevação e, curioso, conduzi Shadow por ali. Dei com um terreno amplo, a perder de vista, e fiz o cavalo parar. Um imenso campo — verde devido à estação chuvosa — se estendia até o horizonte, a vegetação tortuosa típica do solo ácido e lixiviado do Cerrado encrustada de cupinzeiros.

A sombra de um sorriso irônico despontou em meu rosto; vegetação tão pobre, de aparência tão castigada... Mas o solo poroso que parecia inepto para o plantio certamente era só o tapete vermelho que escondia imensas riquezas, o manto da realeza coberta de joias... Os mesmos metais que haviam me levado até aquela região. Ferro e alumínio.

O animal ainda parecia inquieto e relinchou reclamando. Então, açorado por sua impaciência, permiti que ele galopasse sobre a elevação. Avistei a copa volumosa de uma árvore, a única de aparência tão vigorosa ali, e, quando a alcançamos, fiz que parasse sob o dossel de folhas esbranquiçadas. Apeei, amarrei Shadow e o deixei pastar.

Observei mais uma vez a copa da árvore, era tão bonita quanto meu Jacarandá-de-espinho e não tinha os malditos espinhos. Ainda por cima dava frutos. Eu deveria ter derrubado aquela árvore maldita e plantado uma dessas no meu terreno, refleti.

Avistei uma rocha um pouco mais à frente, perto da margem. Caminhei até lá e me sentei. Dali não via a estrada de terra de onde tinha vindo, mas apenas os campos que se estendiam na outra extremidade dela.

Por mais que tentasse expulsar os pensamentos que eu não queria pensar, eles atuavam como tentáculos, fixos a minha mente, lembrando que eu precisava voltar para casa com uma decisão tomada.

Numa tentativa vã de me ver livre deles, friccionei a sola da bota no chão avermelhado, sondando a terra, tinha essa mania desde que havia me metido com mineração.

Perto da rocha a superfície era arenosa e repleta de pedregulhos. Peguei um monte e esfreguei entre as palmas até que a poeira se dissipasse e só ficassem os seixos.

Meus olhos, porém, se voltaram de novo para o horizonte, puxados pelos fios invisíveis da minha consciência, e eu me rendi, comecei a pensar em minhas opções...

Nada parecia certo, nada me satisfazia.

Atirei uma pedra longe e observei até vê-la quicar uns metros à frente. Atirei outra, e outra, uma para cada ideia que eu cogitava e descartava.

A quantidade de seixos na minha mão diminuía e eu sentia como se quatro paredes se fechassem ao meu redor, minhas chances de sair ileso daquela história se extinguindo a cada tiro, a cada opção.

Sabia o que tinha que fazer. Apesar do que ela havia feito, quem tinha que sair de casa era eu. Não podia privar meus filhos da presença da mãe. Mas, se fizesse isso, se saísse de casa, ficaria sem eles. Désirée detestava morar naquela cidadezinha perdida de Deus, não tardaria em voltar para a capital com meus filhos. O que eu faço? — Atirei uma pedra, que quicou bem à margem da elevação. O que eu faço com a porra da minha vida? — pensei e atirei outra, mais longe dessa vez.

Ouvi um estalido e outro som que não pude identificar, além de algo parecido a um grunhido. Franzi o cenho estranhando. Vinha da estrada, uns metros abaixo de onde eu estava. Eu me levantei, caminhei até a margem da elevação e foi então que a vi, uma garota sentada no chão, resmungando, a testa sangrando.



Turfe: esporte que envolve corridas de cavalo, competição e apostas.

O que ela roubou de mim (antigo Roubou a Noite) - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora