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"[...] se me jogar no chão, eu quebro... mas se me pisar, te corto." Martha Medeiros


Gabriel

Não tive coragem de entrar em casa logo que cheguei. Uma hora sozinho no escritório tinha sido pouco para assimilar, tomar uma decisão e dominar meu gênio antes de encarar de frente o problema. Daniel estava certo, eu precisava conter os ímpetos, satisfazer o desejo da minha alma não era a atitude mais inteligente a tomar.

Não era fácil. Minha vontade era chegar ali derrubando a porta e atirando a mãe dos meus filhos para fora pelos cabelos. Não que eu já tivesse sido violento com ela ou com qualquer outra mulher. Eu podia ser temperamental, mas não era covarde. E era por isso que eu me segurava, pensava em meus filhos mais do que em revidar e desabafar a mágoa que criava raízes dentro de mim.

Caminhei a esmo pelo extenso terreno à frente da casa, dando um tempo a mim mesmo, até avistar o jacarandá-de-espinho. Sentei-me em um banco de madeira que ficava sob a árvore, um refúgio proibido para as crianças. Ela já estava ali quando comprei o terreno e, apesar do perigo oferecido pelos aguilhões, que eram muitos, eu tinha insistido em preservá-la. No início do ano, ficava pontilhada de um roxo vívido e era tão sedutora que eu acabara ignorando sua capacidade de ferir.

Olhei para o alto e apreciei a copa frondosa. Senti saudades daquela beleza insidiosa que enchia os olhos e ocultava a ameaça pungente, quando ela florescia. Não era a lembrança, porém, o que me acalmava. A ira ainda era uma massa viva e incandescente se expandindo dentro de mim, mas o desapontamento colapsava minha vontade formando uma depressão profunda, que tragava aos poucos a raiva. Por um lado, isso era um mau sinal, mas vinha a calhar. Meus filhos não precisavam testemunhar meu ódio quando eu o despejasse sobre a mãe deles, eu tinha que ponderar tudo antes de entrar naquela casa.

Uma bela casa, pensei apreciando a fachada. Espaçosa mas aconchegante, pensada para abrigar e congraçar os membros da minha família, mantê-los juntos e felizes. Protegidos e longe dos espinhos. Tudo nela brilhava, imaculado, os amplos painéis de vidro das janelas, o mármore polido e impoluto do piso, o telhado, que, branco como a neve, derramava-se sobre as paredes e colunas peroladas como a cobertura do bolo que celebrava nossa felicidade... E era tudo mentira. Só um maldito verniz, beleza corrompida sobre um poço ignóbil que não tardaria em engolir cada pilar, um a um. Já estava tudo desmoronando, pensei.

Alguns minutos depois, decidido, eu me levantei e comecei a caminhar na direção da casa. Cruzei o espaço que me separava do jardim com passos firmes e cadenciados. Não parei para respirar fundo nem nada parecido, antes de subir os degraus da pequena escada que levava à varanda. Movimentos ainda compassados, nem um milésimo de segundo quebrava o ritmo. Eu não hesitaria. Parei em frente à porta, segurei o trinco e a abri sem vacilar.

— Papai! — ouvi antes de cruzar a soleira.

— Oi, minha princesa. — Eu me abaixei e a peguei no colo, odiando o abatimento que despontava em minha voz.

Ofereci a minha filha uma face e, quando seus pequenos lábios estalaram em minha pele, eu a coloquei de volta no chão. Enquanto Ana Luiza voltava para o que parecia uma reunião de bonecas no meio da sala, pela visão periférica notei um movimento no outro extremo, ao meu lado direito.

— Leo — chamei, mas ele não reagiu. — Filho. — Comecei a caminhar na direção dele.

Estava deitado de bruços no chão frio, uma fila de carrinhos a sua frente. Fazia um movimento de vaivém com um deles e olhava com grande interesse para as rodinhas. Olhei em volta, para a bagunça que as crianças faziam, e meu coração se contraiu no peito. Dava a impressão de que a casa estava viva, meus filhos conferiam vida a ela. Mas era tudo uma frágil mentira, eles só não sabiam disso.

O que ela roubou de mim (antigo Roubou a Noite) - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora