Capítulo 2 - Um Livro do Futuro

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O tempo é escasso quando é preciso.

- Zeliar... é um nome muito estranho. - Comentei a medo para me tentar desviar do pavor de estar sentada no telhado de uma casa. As telhas eram arrepiantemente escorregadias mas a estranha personagem que era Zeliar estava indiferente ao facto de estarmos a dez metros do chão. Remexeu o cabelo com despreocupação:

- Na verdade, é um dos nomes mais comuns da minha era. E pelos vistos o teu também, Inês.

Assenti, ainda a tremer. Nada me garantia que aquilo era real - eu podia estar aconchegada na minha cama a sonhar aquela situação. Os dez metros de altura seriam feitos de algodão e eu conseguiria flutuar antes de me magoar, mas decidi-me a não testar a teoria. Sonho ou pesadelo?  Aquelas primeiras horas da manhã tinham sido as mais absurdas e intrigantes que já vivera até à data, porém não pude deixar de antecipar um perigo que ainda estava por vir. A ignorância é uma bênção? De maneira alguma.

Suspirei. Toda a minha vida podia ter sido sonhada até agora... mas eu sabia que não, pois tudo o que vivera naqueles meros quinze anos foi sentido e mais real que nunca - E portanto também toda aquela situação. 

A rapariga do futuro era um perfeito mistério: feições angulares, olhos amarelados e roupa que em nada correspondia à minha ideia de moda futurista. Deixando de lado as meias que se expandiam até às canelas e a saia feita de um tecido estranho, o pormenor que me saltou à vista foi sem dúvida o conjunto de esferas que pendia na ponta do seu capuz. Prateadas, espelhadas e de diferentes tamanhos, não estavam ligadas por nenhum fio ou corrente mas nunca se afastavam e moviam-se com ela como se de facto estivessem suspensas por alguma coisa, sem produzir qualquer tilintar mas um ruído seco e abafado.

O dito livro, segurava-o eu naquele momento, e quase podia jurar que este emanava uma estranha energia. Incrivelmente leve, a capa era de couro castanho e nela distinguiam-se estranhos caracteres que seriam o título, com um símbolo intrigante mais abaixo - uma ampulheta rodeada por duas serpentes entrelaçadas.

- O que está aqui escrito?

- Ah - Zeliar tocou nas letras ao de leve - São os caracteres do Alfabeto Único. Está escrito "Relatório do Destino". 

Aquele estranho objeto revelava-se cada vez mais interessante e as perguntas surgiam quase violentamente. Sentia-me cada vez mais fora da realidade que era a minha rotina e toda a minha atenção estava agora centrada naquilo - estranhamente...

- Esse alfabeto, suponho que seja comum por todo o mundo? Pareces saber muito sobre a minha era, mas eu não sei da tua. Quem és tu, Zeliar?

Ora! Zeliar, a rapariga do futuro, franziu-me o sobrolho. Por momentos pareceu-me ver a versão futurista da minha irmã mais nova.

- Tal como me informaram, és este tipo de pessoa - sorriu - Gosto dessa assertividade, mas cuidado com quem falas daqui para a frente. Virão atrás de ti. Mas indo direta ao assunto: eu venho do século XXII, nasci em 2118. É verdade que sempre gostei de história, daí saber tanto sobre os anos dez.

- Engraçado como agora se referem assim a este século. Parece que afinal foram precisos mais de cem anos para inventar as viagens no tempo e uma língua universal para todo o mundo?

- Sim. As línguas não se alteraram, apenas adaptaram um segundo alfabeto em comum com o resto do mundo, para facilitar as traduções, mas os falantes de esperanto começam ou irão começar a ser uma moda. É claro que em cem anos muita coisa aconteceu: houve uma crise ambiental que provocou uma guerra por recursos, as grandes potências uniram-se contra o resto do mundo mas acabaram por se trair mutuamente, surgiram revoluções por toda a parte, quebraram-se ditaduras, mudaram-se mentalidades, repôs-se o equilíbrio da natureza, fizeram-se avanços científicos, etc, etc. Isto é algo que pode ser explicado quando estivermos na Dimensão Média, onde o tempo nunca é desperdiçado, ou seja, é estático. 

- Sendo assim, porque é que não estamos a ter esta conversa nessa "dimensão média"? Se o tempo é estático lá, como dizes, porque é que não estamos lá agora, a ter esta conversa? Assim não afetaria o meu dia nem o teu.

Zeliar sorriu aprovadoramente - És inteligente, espero que faças bom uso disso. É verdade, podíamos estar nessa dimensão agora mesmo, mas até mesmo em 2132 as viagens no tempo precisam de uns ajustes. Esta Dimensão Média foi criada por nós, humanos, para nos ajudar a escolher a linha de tempo - que também tem muito que se lhe diga - e é praticamente intemporal, ou seja, a dimensão tempo não existe lá, e é isso que nos permite alternar entre instantes. Mas há sempre um senão: se eu por exemplo, lá estiver durante um dia, quando sair só vou poder voltar a entrar uma hora depois. É uma relação matemática estranha, mas é um erro que ainda não foi corrigido. Passei lá os meus dois últimos dias e estou aqui contigo há meia hora, o que significa que só lá posso voltar daqui a hora e meia.

Compreendi então. Zeliar estivera um dia parada no tempo para procurar a minha linha temporal. Após o que fora um relato emocionante, ela voltou a ficar séria e eu compreendi que estava na altura de falar sobre a minha "missão" de proteger o Relatório do Destino. Levantei-me, ignorando agora a altura a que me encontrava e fitei-a, pronta para a ouvir mais uma vez.

- Este livro, Inês, contém todos os segredos que humanidade já teve e tem. Não se sabe bem a sua origem, mas sabemos que ainda está a ser escrito, pois regista cada segundo que passa na vida de qualquer pessoa, quem quer que seja, onde quer que esteja. Por ter sido escrito no futuro, é óbvio que a tua vida está aqui registada e é por isso mesmo que é perigoso - qualquer pessoa que lhes deite as mãos em cima pode usá-lo a seu favor para mudar o curso da história. Sabemos que isso vai acontecer, a qualquer momento, por isso trago-to para aqui, o passado ou presente, para o guardares e protegeres desses interesses.

Bati com o pé em protesto. 

- Essa não me parece a melhor opção! Qualquer uma dessas pessoas pode viajar para o passado como tu fizeste e levar o livro. Não vejo a vantagem de o esconderes aqui. Apenas teriam que fazer duas viagens.

- Eu sei disso. Acredita que não foi fácil tomar esta decisão, desde que o Livro foi descoberto que se gastou muito tempo para pensar nesses detalhes. Inês, usa o livro a teu favor. Sabes exatamente aquilo que vai acontecer e lembra-te, está a ser escrito no futuro. Cada vez que alguém de lá viajar para aqui, o livro vai registá-lo e a sua linha de vida vai cruzar-se com a tua, vais poder antecipar-te!

De facto, pensado nisso, era uma boa vantagem, talvez até perfeita.

- O problema passa em como posso protegê-lo e a mim? E porque tenho de ser eu a guardá-lo. Eu posso usá-lo para outros interesses menos bons para o mundo. Posso causar o apocalipse com os segredos que tenho aqui.

- É verdade. Mas é claro que foram feitas investigações para a escolha das pessoas. Revelaste ter a mente e os valores certos para executar esta tarefa. Conseguimos sete cópias do Relatório e, por incrível que pareça, há outras duas que estão aqui em Portugal. Vou dar-te tudo o que precisas para a tua missão assim que-

De  súbito o sonido do relógio da rapariga do futuro cortou-lhe a fala. Estava a piscar intermitentemente e o seu rosto envolveu-se numa preocupação e pavor crescente. Suor escorreu-lhe pela testa e eu senti-me a desabar sobre o telhado.

- Eles estão cá... Isto é mau, eu nem deixei rasto nenhum!

-"Eles"?!

Mas  ela agarrou-me no braço sem ter tempo de me responder. Era hora de fugir.

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