Sétima Folha

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Você: um tanto de papéis armados juntos e colados é tudo o que me resta.

Depois daquela noite terrível, passei três dias trancada em meu quarto. Meus pais bateram, tentaram o tanto e o tudo que podiam. Mas, eu não queria sair. Eles me ofereceram as refeições em seus horários e minha mãe até fez a torta de abacaxi que gosto. Porém, o mais importante naquele momento era ninguém ver ou sequer saber do meu estado físico. Meus demônios realmente ficaram bravos comigo. E para piorar, seu chefe ficou no canto do meu quarto, me vigiando durante toda a noite e todo o dia. Não conversamos, ele só ordena e limita minhas movimentações.

Passava-se a madrugada do quarto dia. Fui ao banheiro do meu quarto e olhei meu rosto. Estava melhor, pelo menos fisicamente. Qualquer roxeado que fosse daria para mascarar com um pouco de maquiagem.

Ao ir em direção à porta, senti-me paralisar, então tive de avisar:

— Pegarei uma maça. Irei para a escola enquanto eles tomarão seu café. — informei e qualquer coisa que ele me dissesse ou ordenasse, eu não ouviria, pois já havia saído.

Andando silenciosamente pelo corredor, ouvi vozes. Sussurros na verdade. Estranhando, segui para o quarto dos meus pais. A porta entreaberta facilitou minha espionagem:

— [...] Assim como Tua Palavra diz: eu e a minha família serviremos ao Senhor; submetam-se a Deus. Resistam ao Diabo, e ele fugirá de vocês. — minha mãe falou.

— Pois a nossa luta não é contra seres humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais. — meu pai completou.

Pude perceber que os dois choravam.

— O ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir, mas viestes para que tenham vida e a tenham plenamente. Traz nossa filha a vida novamente, Senhor. Você nos libertou, nos fez conhecer-te quando estávamos perdidos... Toque-a da maneira que precise. Ressuscite-a, Pai!

Então a compreensão trouxe um tremor pelo meu corpo que tentei controlar e as batidas do meu coração aceleraram. Senti um acalento porque eles... Eles oravam... Eles oravam por mim?!

Se importavam! Se importam! — era um sorriso em meu rosto, eu acho.

Mas a voz assombrosa do demônio em minha cabeça logo tratou de tirá-lo.

"Faça como disseste que faria: maça, quarto, escola; agora!" — ele falou e eu como sempre obedeci. Voltei ao quarto e meio que brigamos.

— Por que não me faz nada fora do quarto?

— Engana-se se acha isso.

— Se é como dizes, nunca pelo menos, chegou a me machucar. É por causa do Deus deles? — enfrentei.

— Ao contrário de você, eu aceito a verdade. Sim. — falou simplesmente.

— Ele os protege. Me protege. A luz era Ele! — reafirmei a mim mesma.

— Perceberes agora?! És tão tola. — me encarou com... Acho que desdém.

— Eu não entendo. Se Ele manda em você, porque permite você viver em mim? — questionei.

— Simples: você permite. — responde.

— Não irei mais. Está "demitido" então. — afrontei, não sabendo que palavra usar e, ele assustadoramente gargalhou.

— Não é assim que funciona. Eu sou o seu medo, querida. — disse e cruzou os braços na frente de seu corpo de forma bem despreocupada.

— Medo? Como assim? — perguntei.

— Você se questiona das coisas bobas da vida. É contra a pureza nela existente. Não entende a complexidade e nem a simplicidade da existência de tudo e de todos. Se perdeu procurando explicações. E hoje, tristeza te pesa e não permite que tenha paz. Esse acúmulo de emoções me despertou. O que chama de seu demônio, não passa de seu próprio medo, muito prazer. — um arrepio passa por todo meu corpo. Me sinto pequena com o entendimento de quem ele é — Você tem medo de tudo que se afastou; de ter sido uma completa idiota; de procurar o inevitável; de ter perdido tempo. Você despreza a vida e o Autor dela. Eu sou o seu Medo de admitir o que perdeu por todos esses anos: você mesma. E os meus amigos são suas outras atitudes: seu Egoísmo é o mais forte de nós; os gêmeos Vitimismo e Negativismo, ambos exacerbados nos deixam a vontade por sua mente; sua própria Culpa é a nossa melhor base; a Ansiedade que te consome é meu braço direito; o Pânico de precisar de alguém quando ninguém pode aguentar ou sequer entender o peso de saber como você se sente é o que mais te prende a nós, o seu Cansaço; Tristeza...

— Chega! — tapei os meus ouvidos com as mãos e gritei. Logo passei as mãos nos cabelos embolados no coque.

— Como eu disse. Você não aceita a verdade. — ele deita em minha cama.

— Eu não sou egoísta. E...

— Ah, queridinha. Não mesmo? Haha. Não pensei que poderia ser um tanto engraçadinha. Opa! Isso não terá graça para você: sua amiguinha se entrega a nós hoje. — diz.

— Como... Como assim, e... Ela?

— Se matará.

Diário, eu consegui escrever para ti, mas não sei o que me espera quando enfim clarear esse dia. E nesta vibe inevitável de medo que me atinge e com a certeza de que fortalece ainda mais esse pequeno exército de demônios conectados a mim, despeço-me de ti carinha.

O Diário da Perdida - Vol 1Onde histórias criam vida. Descubra agora