O Dia da Caça

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Existe alguma coisa mais do que evidente nas madrugadas. Uma verdade invariável que o silêncio da alvorada docemente sugere. Em cada casa, em cada família, o cantar puro de todos os pássaros chega mais alto e cristalino nas madrugadas. Na casa humilde e aconchegante que mais uma vez amanhecia coberta de orvalho não era diferente.

O pai que sempre se levantava muito cedo acordava seu único filho, Jeferson, e o levava para trabalhar na feira todos os dias. No dia de descanso quem acordava antes era a mãe e antes de acordar o filho e o marido, fazia o café e deixava na mesa com pães e o familiar pote de manteiga.

O dia comum de folga como por uma dádiva merecida, veio de céu nublado e com pouco vento. O filho que sempre teve boa e honesta vida no seu harmonioso lar tinha poucos luxos e gostava de pegar caranguejos.

O pai que também pegava, sempre lhe explicou tudo sobre os lugares certos, as épocas e até mesmo sobre como diferenciar machos de fêmeas para que ele assim, mantivesse o equilíbrio da vida ao seu redor causando o mínimo possível de danos ao ciclo da natureza. O jovem saiu depois de dar um beijo no rosto da mãe avisando sobre a hora em que voltaria como já era de costume.

O caminho até o lugar onde os caranguejos habitavam era muito sombrio. Poucas árvores, muitos galhos pelo chão e pedras cobertas por limo.

O silêncio da manhã agora era permeado por ruídos agradáveis e o calmo assovio do jovem que seguia em seu andar leve e despreocupado. Seus olhos, porém, tinham por trás da vítrea serenidade outra camada que sempre escondia com incomparável destreza. Em todos os momentos de solidão em seu quarto, em toda a introspecção para com os poucos vizinhos e amigos, no seu dia a dia de poucas palavras e impecável comportamento havia uma razão; Uma força esmagadora e ininterrupta. Um desejo brutal de matar.

Possuído por uma energia negra de maldade e inexplicável sadismo desde seu nascimento, seguia sua vida levado por esse desejo. Causar sofrimento por prazer. Deveria ter em si parte do mal que ocupa o coração de estupradores, homicidas e toda a casta de monstros que não merecem ser chamados de humanos. As raias dessa loucura ainda não haviam tocado um ser humano e nem havia inclinação para esses atos. A satisfação para esse doentio capricho estava em seres menores. Animais que não poderiam se defender e em especial os que nem conseguiam gritar. Isso era como um atalho mágico rumo ao único lugar onde conseguia sua plena satisfação. Se sentir superior, ser um deus onde os seres inferiores só poderiam ser destruídos, dizimados sem a menor chance tendo somente a variação de crueldade de seu carrasco como medidor do tempo de suas vidas.

Jamais quis correr o risco de enfrentar algo que pudesse se defender e na covardia de sua natureza fez os seus hábitos. E Jeferson quando estava aqui se auto denominava Wanda Jor-Jet, a rainha do mangue. Com uma calcinha de onça, dançava em movimentos grotescos e com uma voz rasgada, gritava que já estava presente, que eles deveriam se curvar e reverenciá-la.

O jovem que sempre voltava para casa com poucos caranguejos para a refeição com a família dizia que pegara somente o necessário para a ceia e que também não era um pescador tão bom como o pai. Ria por dentro ao recordar de como havia destruído dezenas de caranguejos com as próprias mãos. Mãos que nesses momentos eram como armas letais e prazerosas. O quebrar das cascas, as árvores ao redor sujas com os restos lançados, sua risada doentia em seu macabro divertimento.

O rapaz chegou ao lugar de costume. Tirou a camiseta, os chinelos, colocou sua mochila no chão e pegou sua peruca de cabelos longos negros. Olhou demoradamente para o mangue e tirou o cinto deixando sua bermuda cair. Era uma índia, era uma guerreira invencível quando estava naquele papel. Era naquele momento uma deusa. Eles que não teriam ninguém para julgá-los ou protegê-los tinham somente a ele que os puniria sem os compensar com nada.

O Dia da CaçaWhere stories live. Discover now