Show clandestino - O Conto de um Lutador de Santiago de Cali

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Os sons de conversas distantes e cobranças de apostadores fanáticos por sangue e dinheiro mal intervêm em meus pensamentos, apesar de notar a sua existência como um ruído, bloqueados pelas paredes ocas do vestiário. Estou aqui sentado no chão, imaginando por mais qual provação me submeterei hoje. Esta será a terceira luta. Eu preciso... Eu preciso de dinheiro pra sair dessa vida desgraçada e meus punhos são a única forma que tenho de conseguir isso... Aqui... Em Santiago de Cali, nesta porra de subúrbio.

*Batidas na porta

- Sua vez, vê se não demora dessa vez, porra!

Saio da minha posição de meditação. Merda, ainda nem coloquei as faixas nos punhos. Foda-se, vou colocando no caminho pro ringue. 

O maldito corredor vazio. Mal consigo encará-lo. Caminho cabisbaixo aquela maldição interminável de concreto mal acabado escutando as putas gemendo nos quartos misturado com a gritaria desenfreada dos porcos que alimentam esse maldito show. Isso aqui é um pedaço do inferno. Como eu vim parar aqui?! É agora que a minha cabeça se imerge em arrependimento por cada escolha desgraçada na vida. Porra! Foco! Eu vou lutar agora, não posso estar emotivo!Corredor desgraçado!!!

A gritaria está cada vez mais incessante, quase ensurdecedora. Isso significa que estou no caminho certo e que não existe mais volta. Já estou pronto, meu ritual de não enlouquecer foi um sucesso. Cá estou eu. Um silêncio repentino seguido de sussurros criou uma atmosfera densa. Me arrepiei com a velocidade da adrenalina fluindo em minhas veias. O tempo pareceu andar em câmera lenta enquanto eu subia no octógono. Enquanto eu me alongo, o meu oponente aparece noutro canto me encarando como um cão raivoso. Os gritos do lado de fora aumentaram. Ele começa seu ritual de imponência dentro do octógono. A porra de um showman.

Foco!!! 

Ele para e ergue sua guarda. Vamos analisar a situação. Mais ou menos um metro e oitenta. Peso mediano. Pernas fazendo a linha de frente, enquanto os braços levantam a guarda sobre o rosto. Músculos aparentemente mais rígidos em todo o cumprimento das pernas. Qual tipo de luta? Taekwondo? Possivelmente sim. Vou dar os primeiros passos. Ergo meus braços na altura do nariz com meus punhos cerrados e mantenho-os centralizados; mantenho meus joelhos mais ou menos flexionados, meu corpo está de lado e minha guarda já está perfeitamente encaixada; aguardo a minha hora. Depois que o homem bêbado que teimam em chamar de juiz der o sinal no ringue, é tudo ou nada. Ele mantém seus braços erguidos, soando como um porco por mais uma dose de cachaça, enquanto gira o pescoço firmemente a fim de manter o olhar penetrante nos olhos de cada lutador. Já ditou as regras; tão rápido que nem prestei atenção. Eu percebo enquanto os seus braços começam a descer e mantenho a postura. Quando termina o movimento, ele sai da frente o mais rápido possível, para não ser pego por um pé apressado, ou um soco fulminante; logo em seguida, o gongo.... Começou!

Avanço em duas pisadas firmes. O som oco do octógono alerta qualquer rato no raio de 30 metros. O lutador adversário avança numa pisada única, ficando de lado, enquanto a perna que estava na parte de trás se levanta acima da cabeça e cai rápida como uma bala, com força o suficiente para partir um tronco ao meio. Eu a seguro com ambas as mãos e esforço considerável; é a minha chance? Não. Enquanto mantinha os olhos na perna em que segurava, ele levantou a adjacente, suspendendo- se no ar e forçando o meu recuo; seu corpo suspenso no ar deu dois giros rápidos, caindo e flexionado sobre uma das pernas, enquanto a outra se apoiava, para manter o equilíbrio.... Seu olhar sempre fixo nos meus. Ele é praticante de outra arte, mas qual? Ele se ergue e mantém posição. Já mostrou que não está para brincadeiras, muito menos que respeita seu adversário.... Almejamos a mesma coisa: a gloria de um corpo sob seus pés esta noite. Os gritos dos apostadores do lado de fora do octógono, somados ao cheiro de cigarros e bebidas dão a sensação de briga de bar. As luzes focadas no ringue deixam o ambiente inteiro um breu e as silhuetas dos homens enlouquecidos parecem de demônios reclamando a alma perdedora desta noite... 

Porra, foco na luta!!!

Ele ainda não sabe o meu estilo. Levanto a guarda, lá vou eu de novo. Preciso manter a luta próxima, ele usa muito as pernas. Dois passos curtos foram suficientes para a distância apropriada. Ele mantém a postura do início. Com o braço direito, aplico o falso jab. Ele dá um passo largo para trás, esquivando do golpe e mantendo a distância necessária pra aplicar um golpe com a perna; não posso protelar! Qualquer vacilo e esse cara me desmaia com um golpe só. Acompanho seus movimentos e tento outro falso jab, dessa vez com o punho esquerdo e ele recua, novamente. Hora de arriscar para valer! Dou um passo mais largo, que me permitiu encara- lo de frente e numa distância arriscada. Aplico um direto, mas dessa vez ele apenas desviou, de lado, olhando para o soco... Erro rude.... Deixou sua guarda aberta e sequer percebeu a minha perna traseira que se erguia, fulminante, com o joelho flexionado e mirando diretamente na boca de seu estômago. O golpe lhe tirou o ar, fazendo- o cambalear para trás e não permitindo que ele soltasse sequer um gemido de dor.... Pude respirar enquanto voltava a perna a sua posição normal.... Foi tempo o suficiente para tomar a decisão final; um chute com o peito do pé em sua cara, que o derrubou tão rápido quanto foi o golpe. No momento em que seu corpo bateu duro no piso oco do ringue, o silêncio tomou conta do ambiente por alguns segundos. O juiz contava; pude ouvir os tic e tacs fora de sincronia dos muitos relógios de pulso que me rodeavam. Pouco tempo depois, os gritos exaltados dos apostadores que haviam feito a escolha certa cortaram o zumbido de silêncio em meus ouvidos, aumentando gradativamente conforme eu me recompunha. Dei meu suspiro final enquanto baixava a guarda. Meu coração gradativamente ia se acalmando. A luta finalmente havia acabado

Porra, eu venci!!!!!!

Uma sensação de alívio me tomou conta. Toda aquela lamentação de odiar essa vida pareceu estúpida, afinal. Assinei minha sentença de morte a sangue para alimentar esse "pão e circo" maldito, mas não sei fazer outra coisa. É assim semana após semana. Temo pelo dia que eu caia sobre os pés de alguém, mas até lá, eu sobrevivo, porque isso é o que sei fazer de melhor!

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E aí, o que acharam? Logo haverá um próximo capítulo. Até lá, conto com vocês em! Deixem seus comentários com sugestões para uma próxima história.

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