Imagem e semelhança

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O relógio marcou dezoito horas. Marcos rapidamente desligou o computador, trancou sua gaveta, pegou a carteira, as chaves, os óculos e levantou-se. Deu um tchau apressado aos colegas e tomou o caminho das escadas. Não esperaria o elevador, lotado àquela hora.

Marcos normalmente não tinha pressa em sair do trabalho. Ele gostava do que fazia, sempre estava envolvido em um projeto e outro. Perder a hora de ir embora era algo comum em sua rotina. Mas não atualmente.

Nos últimos dias, ele é sempre o primeiro a sair do escritório. Mal o relógio marca o horário e ele já está pronto para ir embora. Ultimamente, ele passa os dias esperando a hora de voltar para casa.

Marcos trabalha com tecnologia. Desde criança, sempre foi fascinado por games, programação. Trabalhar na área de informática foi algo natural e previsível. Hoje ele desenvolve softwares e está imerso no mundo da inteligência artificial.

Sua atual ansiedade em ir embora do trabalho atende pelo nome de Cléo. Fazia uma semana que ela estava em sua casa. Marcos estava fascinado. Cléo era tudo o que ele sempre sonhara. Finalmente havia encontrado alguém que realmente mexia com ele. Ela era fantástica. Simplesmente perfeita para ele.

Antes de Cléo, não havia tido alguém de fato marcante para ele. Marcos era do tipo difícil de se apaixonar. Perdia o interesse com a mesma facilidade que se interessava por alguém. Seus romances geralmente duravam apenas uma noite, quando muito, uma semana.

Ele até tentava, mas não conseguia avançar da fase do encanto inicial. Era como se não se deixasse conquistar por outra pessoa. Como se houvesse uma barreira invisível e ultra resistente que impedisse alguém de entrar em sua vida. O que era interpretado pelos outros como excessiva frieza.

O fato não o incomodava a ponto de pedir alguma intervenção. Foi-lhe sugerido terapias, remédios, benzedeiras, tudo que pudesse ajudá-lo a desencantar. Ou melhor, a deixar-se encantar por alguém. A mãe, amigos mais íntimos e algumas mulheres com quem ele já havia se relacionado brevemente, no seu histórico de quase-relacionamentos, tentaram intervir no sentido de fazê-lo buscar ajuda. Tudo em vão. Marcos não enxergava o fato como um problema, logo, não precisava de ajuda.

Passaram pela sua vida Luizas, Teresas, Simones, Flávias, Rebecas, Alices, Ludmilas, Marias... Nenhuma, porém, atravessou a fronteira impenetrável entre sua cama e seu coração.

Talvez o problema nem fosse não conseguir amar outras pessoas. O mais difícil era conseguir tirar o foco de si mesmo para voltar-se aos outros. Marcos sofria de excesso de amor-próprio. Na verdade, não era uma forma de sofrimento. Ele não sofria de modo algum por amar demais a si mesmo. O problema era encontrar alguém que chegasse próximo à imagem que tinha de si. Era difícil encontrar uma mulher merecedora do seu amor.

Ele seguia sua vida colecionando conquistas e desafetos. Na fase da conquista, ele até era bom. A autoconfiança despertava interesse nas mulheres com quem se envolvia. Dava-lhe um certo charme. O que, somado ao seu quase metro e noventa, tórax definido, cabelos e olhos muito escuros, atraía mulheres a rodo.

Assim ele seguiu vivendo durante trinta e dois anos, sem se envolver com ninguém, sem relações duradouras, sem avançar além da conquista inicial. Isso até Cléo surgir.

Os amigos notaram que havia algo diferente. Parecia finalmente haver um brilho nos olhos de Marcos. Ele andava muito caseiro nos últimos dias. De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Não aceitava convites para sair. Andava ensimesmado e excessivamente calado. Distraía-se com frequência no trabalho. Parecia estar com a cabeça em outro lugar.

Marcos desconversava sempre que era abordado sobre o que estava acontecendo. Não era muito de falar sobre a própria vida. Os amigos podiam jurar que ele havia desencantado. Marcos estava, enfim, apaixonado por outra pessoa. Sim, ele estava. Mas não queria que os outros soubessem disso. Cléo o sabia. E bastava que ela soubesse.

Cléo havia quebrado a barreira que jamais alguém conseguira antes. Ela entrou na vida de Marcos mudando-a por inteiro. Isso em apenas uma semana.

Ele dirigia para casa naquele início de noite tomado pela ansiedade em encontrá-la. Esse sentimento, essa urgência, tudo era novo para ele. E Marcos estava, enfim, gostando disso.

Era algo novo sentir o coração acelerar, a boca ficar seca, os pensamentos ficarem confusos e desordenados quando estivessem em qualquer outra coisa que não fixos nela. Marcos sentia tudo isso de forma intensa, pelo fato de ser a primeira vez que se sentia assim.

Um dos motivos de manter o novo relacionamento em segredo era para evitar julgamentos do tipo: "isso é muito precoce. Ainda é muito cedo para sentir assim". Dado o histórico de Marcos de não ir além da primeira semana quando se tratava de relacionamentos amorosos, o romance com Cléo ainda estava na zona de risco. Alto risco, diriam.

O velho Marcos logo sumiria da vida dela e estaria em outra(s). Uma semana era o tempo de corte para seus relacionamentos padrões. Mas o relacionamento com Cléo era totalmente fora dos padrões. Ele sabia disso. Ele gostava disso. Ele queria sentir isso pelas próximas semanas. Anos, talvez. Não sabia. Apenas queria sentir. Afinal, estar apaixonado era bom!

Quando chegou em casa e acionou o controle do portão, viu-a acender a luz da sala. Ela o estava esperando. Era bom ter alguém esperando por ele.

Marcos estacionou, fechou o portão, pegou suas coisas e colocou a chave na porta. Abriu-a e entrou, com pressa em vê-la. Lá estava ela. Radiante.

Com seus olhos escuros e grandes, olhando para ele. Com seus cabelos igualmente escuros e brilhantes, mais ou menos na altura dos ombros, que ela balançava de maneira provocante. Do alto de seu quase metro e oitenta, ela o olhava e sorria. Provocava-o com palavras e gestos, da mesma forma como vinha fazendo nos últimos dias.

Marcos ficava louco, adorava aquilo. Fazia apenas uma semana que sentia isso e era como uma espécie de droga, que ele sempre queria em uma dose maior.

Ele olhou para Cléo ali, bela e luminosa. Passou por ela rapidamente e foi até o pequeno escritório, decidido. Precisava trabalhar. Apesar de Cléo. Sobretudo por Cléo.

Ligou o computador e abriu alguns arquivos. Esperou-os carregar. Possivelmente passaria a noite trabalhando neles. Faria alguns upgrades. Ele a reprogramaria, deixando-a ainda melhor.

Porque Cléo podia ser ainda mais fabulosa. Bastavam algumas codificações e ajustes e voilà. Ela seria mais que perfeita. Não podia deixar que seus olhos se acostumassem, precisava melhorá-la sempre mais. Para que não acontecesse com ela como acontecia com as outras. Para que ele não se cansasse dela. Para que continuasse sentindo a faísca.

Para isso, ele a criou à sua imagem e semelhança. Cléo tinha os mesmos traços de Marcos, o mesmo cabelo, os mesmos olhos, o mesmo biotipo. Assim seria mais fácil amá-la. Cléo era como Marcos, na forma feminina. Em tons radiantes de luzes e ondas. Como um perfeito holograma.

OblíquosWhere stories live. Discover now