Escolhas

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Rafa:

Minha vida sempre foi tão cíclica quanto um calendário da civilização maia. Desde pouca idade já estava tudo planejado, para que não saísse um milímetro do estimado. Iria estudar muito, aproveitar o máximo das aulas, adquirir cada vez mais conhecimentos e frequentar uma boa faculdade, dando orgulho para toda a minha família. Uma vida certa. 

Teria que me aprofundar nos meus objetivos e tirar qualquer tipo de distração desbaratinante, como coisas estupidas de adolescentes. Mas, sério, se soubesse o que estava por vir não teria focado tanto, me privado de tantos prazeres e me tornado essa pessoa frívola, que não sabe ao menos o que realmente almeja. Sempre me senti sufocada por sonhos de outrem, colocando minha satisfação em segundo plano. Mas na verdade, queria apenas ser eu mesma, ter amigos, conhecer o mundo. E, por mais estranho que parecesse, finalmente tudo estava dando certo para mim, fiz mais amigos do que o ano anterior, estava mais comunicativa, conseguia me divertir e ser eu mesma perto deles, estava indo bem nos testes. Até que tudo mudou. Cada vez mais meus propósitos se distanciaram de mim com apenas um anúncio.

Meu destino era incerto. Senti completamente indefesa, amedrontada, frustrada, como se tudo que tivesse preparado a minha vida inteira fosse em vão. Sabia que a crise se instalava em nosso País, e a vulnerabilidade social vem acompanhada da repressão autoritária, mas nunca pensei em um sistema de Facções, que definiria quem somos, o que fazemos. Facção antes mesmo do sangue. 

Nos últimos meses antes da cerimônia de escolha lembro-me de todos apreensivos, porém sem tentar transparecer em seus rostos. Meus amigos sempre foram muito fortes e tratavam as coisas, por mais graves que fossem, com leveza. Todos diziam que eu seria da Erudição, pois tinha as melhores notas, os melhores resultados e etc. Mas não sei se era o que eu queria fazer, almejava ser verdadeira com tudo que faço, ser honesta, nunca mais ter que ouvir uma mentira que iria impulsionar negativamente a minha vida, me libertar da vida cotidiana enfadonha, escolher a Franqueza, talvez.

Não sei se realmente tenho essa liberdade. As facções nunca foram uma escolha, os testes seriam para nos ajudar, mas na prática só serviam pra nos controlar, para  não arriscar o modelo planejado por eles.

Na manhã da realização dos testes, tive vários pesadelos, mas um dia a mais sem dormir não faria muita diferença para mim. Acordei e olhei para o teto do meu quarto, tentando me distrair em qualquer linha ou traço, qualquer coisa que pudesse me tranquilizar. Passou algum tempo quando decidi me levantar e ler alguma coisa, peguei meu exemplar de " viver em paz para morrer em paz" de Mário Sergio Cortella e chafurdei naquele mundo de palavras sagazes: "Gente que não tem dúvida não é capaz de inovar, de reinventar, não é capaz de fazer de outro modo. Gente que não tem dúvida só é capaz de repetir." Por mais que para alguns não seja tão inspirador, de alguma forma isso me deu forças para continuar.

 Andei em direção ao banheiro, tomei um banho, vesti meu uniforme, fiz uma trança transversal nos meus cabelos e, para finalizar, coloquei uma correntinha de família que minha mãe me dera no meu aniversário de 15 anos - foi um dos meus últimos dias normais- era repleto de brilhantes e revestido de prata, formando um trevo de quatro folhas para "dar sorte" (não foi exatamente o que tive). Me encarei por um tempo no espelho, tentando visualizar a garota primorosa que de diversas formas eu deveria ser, mas não encontrei traços dessa pessoa, nem ao menos uma célula disciplinada ou metódica o suficiente.

Chamei minha mãe, que respondeu com um xingamento e fui para o colégio. Queria ter dito tanta coisa para todos os meus amigos, tentado tirar essa dúvida que aflorava a minha mente e descontrolava meus sentidos. Mas não consegui colocar em forma de palavras os meus sentimentos e tentava não deixar meu nervosismo transparecer.

Algum tempo depois subi para a sala que iria realizar meu teste. Preenchi o questionário rapidamente para que aquilo acabasse o mais rápido possível. Entrei na sala, onde uma moça da abnegação me cumprimentou, por mais que estivesse um pouco longe ainda consegui ler seu nome no crachá "Sandra". O sistema logo indicou meu resultado. Sandra me parabenizou e disse que até agora não tinha visto números tão exatos para uma das facções, 95% Erudição. Logo perguntei o que representava os outros 5%, e ela respondeu Franqueza.

Por mais certo que tudo estivesse nos meus papéis, ainda tinha uma pontada de incerteza, esses 5% podiam mudar a minha vida, quem sou agora. Me perguntava se não deveria desafiar os padrões, os testes, tudo, para fazer uma escolha que fosse totalmente minha, não deixar nada influir sobre mim.

No dia da cerimônia o teatro Rio vermelho estava lotado e vi muitos adolescentes animados com o novo sistema. Procurei por algum tempo algum rosto familiar para receber algum tipo de conforto e achei Jonathas, ele não parecia muito bem, estava bem nervoso, provavelmente pelos mesmos motivos que eu, mas não me viu quando acenei. Depois de um tempo olhei para algumas fileiras abaixo de mim e encontrei Fernanda, que me deu um sorriso gentil e sussurrou algo "fique calma" ou "foda a alma", não consegui compreender direito, então apenas sorri de volta. Nos minutos subsequentes tentei apenas relaxar e não pensar demais, a maioria dos meus amigos já tinha feito sua escolha e eu desejava que tivessem sorte.
Quando chamaram meu nome me empenhei a não tremer muito e me concentrar nos degraus para não cair. Segurei a lâmina,  sentindo um arrepio percorrer todo meu corpo, cortei minha palma da mão e olhei atentamente para os recipientes. Será que seguiria meu coração? Acho que não sou corajosa para tanto, não sei fazer minhas próprias escolhas, sou muito covarde. Os dois recipientes me encaravam e um meu estômago começou a embrulhar quando avistei o conteúdo repleto de sangue. Pinguei-o no recipiente da erudição e corri em meio a gritos e palmas para me juntar a eles.

DIVERGENTEOnde histórias criam vida. Descubra agora