Lembranças apagadas

4.7K 202 28
                                    

SANEM

O mar revolto trazia as mesmas sensações que a garota suburbana sentia agora. Depois da discussão acalorada com Can, o amor de sua vida, mas que agora sequer era capaz de lembrar-se dela, Sanem resolveu dar um basta.

O medo que sentia era tão intenso, que chegava a lhe deixar paralisada. As lembranças dos momentos em que acreditou estar no fundo do poço batiam em seu rosto, sem dó.

Ela era capaz de sentir o cheiro das acomodações hospitalares em que esteve internada. O odor dos produtos estéreis, que combinados aos medicamentos, a deixavam em um estado de torpor incapacitante.

E era dessa forma que ela se sentia naquele momento. Estéril. Oca por dentro.

Sentindo uma lágrima deslizar sem esforço, Sanem passa a mão no rosto, afastando-a dali. Para seu engano completo, aquela lágrima foi apenas a primeira de muitas que se seguiram.

Por mais que não quisesse chorar, o impulso era incontrolável.

Em dado momento, sentindo as pernas fracas, resolveu sentar-se à beira do mar, mesmo que as rochas ferissem sua pele.

Sanem chorou por tudo. Pelo que viveu, pelos momentos felizes e pelos dolorosos; chorou pela crueldade da vida, que lhe mostrava abertamente que, talvez aquele amor não estivesse destinado a acontecer como naqueles dos livros que lia.

Com um suspiro resignado, permitiu que o resquício de racionalidade a percorresse. Ela percebeu que dos sonhos cultivados desde antes, havia realizado um: escrevera um livro. E sem imaginar que pudesse ter alcançado tamanho sucesso, sentiu-se realizada por ter vencido seus próprios medos.

Uma fagulha de lembrança brotou em seu subconsciente. Sim, ela havia finalizado seu manuscrito, mas não buscou conquistar o sonho que sempre teve: o de ir a Galápagos.

Can já não a queria com a mesma intensidade de antes. O amor que sentia por ela se acabou como num passe de mágica, esmagado em meio aos fragmentos de vidro naquele acidente.

Decidindo agir, mesmo que aquilo lhe valesse um sofrimento ao qual teria que enfrentar, ficou de pé e traçou seus próximos passos.

Ela não ficaria à deriva, esperando que a vida lhe sorrisse outra vez. Não. Sanem mostraria que ainda havia dentro de si um brilho único e próprio.

Chegando ao cais, acenou para o primeiro táxi que apareceu.

— Você poderia me deixar nesse endereço? — perguntou com a voz enrouquecida pelo choro.

— Claro, senhorita.

O trajeto até a vila, até a casa onde vinha morando desde o último ano, foi feito em total silêncio.

Depois de pagar o motorista, Sanem se dirigiu à casa que Mihiran tão gentilmente lhe havia cedido.

Pela força do hábito, olhou para o chalé onde Can também passara a viver quando voltara a Istambul.

A moça apressou os passos, lutando para não desistir de sua súbita decisão.

Sanem correu para o quarto e puxou a mala de viagem de cima do armário. Colocando-a sobre a cama, olhou ao redor pensando no que deveria levar e deixar para trás.

Seus olhos bateram direto no diário que vinha escrevendo desde o retorno de Can à sua vida. Agora ele não teria mais serventia. Não queria mais expor em palavras os sentimentos que a dividiam ao meio. Não queria se contentar com as migalhas daquilo que tiveram.

Ela decidiu que era chegada a hora de virar outra página em sua história, reescrevendo as linhas do seu destino.

Com pressa, arrancou as roupas do armário, das gavetas, os pertences do balcão do banheiro. Colocou-as de qualquer forma, sem dar-se tempo para organizar o que agora estava desorganizado: sua cabeça.

Pássaro FeridoOnde histórias criam vida. Descubra agora