Londres e novas regras.

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Myoui Mina, vinte e um de setembro de 1956.

Eu não sabia que era possível alguém estar tão dominada pela raiva quando eu neste momento, enquanto o Senhor Hector dirigia pelas ruas de Kensington à procura da casa de sua nova patroa, minha madrinha.

O motivo? Eu, Myoui Mina, desmiolada como sempre fui, cometi o crime de perder o trem de volta para Bordeaux há cerca de duas horas atrás. Ele havia partido há apenas alguns minutos levando meus restos de esperança de poder me apresentar como personagem principal no espetáculo de Copelia, na Ópera da Bastilha.

Bonito não é? Se não fosse um desastre.

Tudo isso só começou porque mamãe me mandou até a Inglaterra com a desculpa de eu me especializar em dança em um colégio interno. Eu sabia que esse não era o motivo real. Depois de ela descobrir o que eu e Vivienne, uma das minhas colegas de crisma, nos beijamos escondido na cozinha da igreja, ela teve um surto de superproteção alegando que eu estava sendo tentada pelo demônio na França, e durante um ano inteiro eu fui vigiada por Hector, seu contratado para "me proteger", quase como um guarda costas. Também não é como se eu precisasse de um. Nunca saí às escondidas, nem paquerei os garotos nos clubes que frequentava com minha família, por ter de ser uma moça direita e exemplo nas próximas gerações que de Myoui que viriam. Também jamais tirei notas ruins no colégio e certamente sempre fui a melhor quando o assunto é balé.

A melhor. Sempre.

Era isso que a minha genitora sempre disse e me fez repetir que falhar nunca seria uma opção. E se eu tivesse que ser a melhor bailarina do país, então eu seria só para que ela não se aborrecesse.

Acredite, você não vai querer conhecer a fúria de uma Myoui.

A questão é que ela quer me proteger no seu casulo de todas as maneiras possíveis, por mais que meu irmão Kai possa fazer o que bem entender, é essa diferença de tratamento que mais me dá nos nervos. Sei o motivo de prenderem as moças enquanto os rapazes ficam à solta como urubus rodeando sua próxima refeição.

Eu pensava com os meus botões enquanto olhava a cidade movimentada pela janela do Cadillac preto. Não é um dos melhores carros para se passar por uma hora e cinquenta minutos, e pelo andar da carruagem meu traseiro certamente doeria a noite toda por conta do banco duro, mas era o que tínhamos no momento, e reclamar de algo que não é seu sempre é falta de educação. É certo que tia Miso é, num linguajar mais abjeto, podre de rica, e isso não quer dizer que ela tenha de me deixar andar em um DeSoto Costum pelos dias que ficarei aqui, os quais creio eu que não sejam muitos.

Não que eu não gostasse dela, na verdade minha tia sempre foi alguém muito agradável nos antigos jantares de família e provavelmente a mulher mais jovem e mais legal entre os irmãos do meu pai, sempre perguntava por mim e fazia questão de me presentear mesmo a longa distância para não perdermos o laço afetivo. Mas gosto tanto da França. Gosto dos meus gatos, das tardes depois da missa e de ficar no telefone até às dez da noite conversando com algumas das minhas amigas do balé. Além disso, a última vez que vi tia Miso foi com onze anos de idade no aniversário do falecido Tio Asami, e que Deus o tenha.

Pensei tanto nessas coisas que nem vi quando eu e Hector realmente chegamos ao destino. Me dei conta do mundo real quando senti as portas do carro serem abertas subitamente e consegui ver o rosto envergonhado de Alice ao ver que havia me assustado, de certa maneira eu pude rir ao ver suas reverências de desculpas e me permiti dizer que estava tudo bem, com um sorriso no rosto. Sabia quem ela era depois de tantas vezes que atendeu ao telefone da casa para avisar à Miso que sua afilhada estava telefonando, mas era bem mais bonita do que eu imaginei.

Não parecia ter origem asiática, apesar dos olhos serem quase amendoados e das bochechas mais avantajadas, seu cabelo era castanho quase cobre, quando estava na luz do sol, bem diferente da mulher de meia idade a qual eu tinha construído na minha cabeça.

Camélias no Inverno - Michaeng | Livro UmOnde histórias criam vida. Descubra agora