Cαρítuɭo II

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  Mais cedo ao entrar pela porta dos fundos percebi o quanto a cozinha é enorme, muito bonita e sofisticada, aposto que nossa casa caberia aqui e ainda sobraria espaço.

  As vezes me pergunto se toda essa beleza condiz com os donos, ou se são feias e podres como todo o lixo que tiramos no fim de uma faxina.

  Continuo aguardando que minha mãe me chame, até começo a ficar ansiosa, os proprietários desta casa estão demorando mais a sair que os outros pra quem ela trabalha, é sempre assim... minha mãe dá uma olhada ao redor, vê se alguém está presente, se estiverem espero no armário, e quando saem pulo pra fora e meto a mão na massa junto com ela.

Ouço um barulho na porta da cozinha e fico atenta, afinal a qualquer momento ela vem me chamar.

  _ Lua ? Cadê você?

Ah! Que alívio! Finalmente minha mãe me chama.

_ Oi mãe, estou aqui!

Abro a porta do armário e a encontro encostada no balcão reluzente.

Em plenos 33 anos Beatrice tem uma beleza considerável, seus cabelos estão presos com uma liga muito usada, alguns fios soltos aqui e ali e um rosto de quem pede socorro. Seu rosto oval com feições cansadas e olhos azuis de quem precisa de um bom descanso.
Apesar de toda essa aparência desleixada, minha mãe é espetacular quando arrumada, seus um metro e sessenta a fazem baixinha, mas tem um corpo de arrasar.
Infelizmente isso é muito difícil de se tornar visível para outras pessoas, pois minha mãe não é vaidosa, não evidência nenhuma de suas qualidades, usa roupas comportadas até demais e dois números acima do seu, eu acredito que ela quer esconder o corpo, assim como esconde quem ela na verdade é.

_ E então lua, alguém te viu?

Não sei porque ela insiste em me chamar de lua, chega até ser engraçado, pois a única coisa em comum que tenho com a lua é a cor branca que condiz com a do meu cabelo, e a beleza? Bem, a beleza em mim passa longe.

Reviro os olhos rapidamente sem que ela perceba, ela detesta que faça isso.

  _ Não mãe, ninguém me viu, sou um fantasma, lembra?!

  _Que bom, você sabe o quanto é perigoso que te vejam, se sua presença for reportada a alguém da agência posso ser demitida.

  A agência de serviços de limpeza em que minha mãe trabalha, não sabe que a  acompanho em suas obrigações.
Anos atrás por um mero acaso ela precisou me levar junto em uma de suas faxinas, como não podia me deixar sozinha em casa por estar doente, fui com ela para o trabalho. Diversas vezes minhas idas se repetiam, e como eu já tinha doze anos, pude ajudá-la em algumas tarefas simples, desde então se tornou rotina... em horários livres vou junto com ela ao trabalho e ajudo de alguma forma.

  _ Sei bem disso, eu tomo todo o cuidado do mundo, e aí já saíram?

  _ Sim querida, seu Edgar acabou de sair, aparentemente estava muito estressado e chateado com algo, me disse apenas um bom dia e saiu para trabalhar.

  _ Nossa mãe, até parece que um senhor rico que nem ele tem motivos pra ficar chateado, com a quantidade de dinheiro que ele tem, devia viver sorrindo.

  _ Não fala isso filha, você sabe que riqueza não é sinônimo de felicidade.

Isso é uma tremenda verdade, pelo que minha mãe fala meus avós são pessoas amarguradas, e que por maior que seja a conta bancária deles, não há motivos para sorrir, o egoísmo e a falta de compreensão os fizeram perdê-la, e a mim também.

  _ Verdade mãe, desculpa. E aí, como vamos fazer hoje?

  _ Verifiquei os cômodos do térreo e não estão tão bagunçados, seu Edgar mora sozinho e dificilmente fica em casa, então há pouco a se fazer, vou ficar com a parte de baixo, e você fica com as quatro suítes lá de cima, tenta terminar o mais rápido possível, pois o patrão pode voltar a qualquer momento e eu não quero que ele te pegue aqui.

_ Tá bom mãe, vou só pegar o material e subo para limpar e organizar as coisas.

Em dias de faxina eu venho com a minha pior roupa, não posso me dar ao luxo de estragar uma peça melhorzinha, sei que não somos pobres a ponto de não ter o que vestir, mas temos economizado e dispensado contas desnecessárias recentemente, estamos tentando comprar um carro, ficar andando de ônibus por aí é muito cansativo.

Vou para a sala no intuito de subir as escadas, vejo que assim como na cozinha, aqui também é tudo ponta de linha, sofás grandes e uma poltrona aconchegante, uma televisão enorme; sem sombra de dúvidas maior que minha cama. Quadros de arte belíssimos em paredes num tom neutro, obviamente cada um mais lindo que o outro.

Notei algo estranho, não vejo em lugar algum  fotos da família do seu Edgar, ele deve viver mesmo sozinho.

Realmente o julguei mal, casa grande e cheio de móveis requintados, mas sem alguém para compartilhar todo esse conforto, deve ser tudo muito solitário.

Subindo as escadas, olhando para os pés, percebo que preciso retocar meu esmalte nud, está descascado nas pontas e a minha unha do meio quebrou, não faço a menor ideia de como isso aconteceu, sou um desastre ambulante agora amnésica, minha vida só melhora.

Vejo que cheguei próximo aos quartos, vou abrir a porta de número um, e depois sigo aleatoriamente.

LUAOnde histórias criam vida. Descubra agora