Canto 2 - Encantamento

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Abrir os olhos e perceber que estava em casa me provocou uma sensação de alivio indescritível, pude apreciar esse alivio por cerca de três minutos até que senti algo estranho no meu bolso. O relógio antigo estava lá, marcava exatamente às cinco e doze da madrugada. Os detalhes chamavam-me muito a atenção, era todo prateado, marcava os horários em números naturais e em algarismos romanos, ponteiros dourados e a foto de um garoto. Era um garoto ruivo, sorridente, olhos negros como o ébano, a expressão de seu rosto era a de um anjo, mas seus olhos me causavam arrepios. Atrás do relógio tinha um nome e uma data gravados, "Pedro, 1923".


Levantei da cama, depois de tomar banho e me arrumar sai e casa e fui para o estágio de professor. Assim que cheguei vi que a sala dos professores estava um tanto agitada, dois professores discutiam politica e outro ria e incitava a discussão.


— O senhor não toma jeito mesmo hein, professor Andrade — disse eu ao professor que estava rindo.


— Ah Tarcísio, que bom que chegou. Aprecie o espetáculo de dois velhos caducas brigando — Respondeu o professor Andrade bem entusiasmado.


— O senhor não devia botar lenha na fogueira, pode acabar sobrando pro senhor. E, aliás, a aula vai começar.


— Você tem razão, a aula vai começar — Ainda se recompondo de suas risadas ele se levantou, pegou sua mochila e disse — Vamos! 


O professor Andrade é um homem bastante excêntrico. Por raras vezes penso ser mais maduro que ele, entretanto não posso negar que seu intelecto é absurdo. Podia ter escolhido trabalhar como físico ou como cirurgião, mas escolheu ser historiador, um dos melhores eu diria. Nunca vi alguém tão dedicado aos estudos em toda minha vida, ler para ele é como respirar. Considero-o um gênio, mas por vezes também meio louco.


Depois de uma manhã inteira de aulas estávamos bastante cansados, e a melhor maneira de resolver isso foi em um restaurante de comida caseira. Depois de contar o que aconteceu comigo, o professor parou, respirou e disse — Tu usaste droga?


— Tá doido professor? Claro que não! — respondi firmemente sua pergunta sem hesitar.


— Então, só conheço uma explicação pra o que tu me contaste — ele se reclinou sobre a cadeira com uma das mãos em seu queixo pensando — Só tem uma pessoa que pode decifrar o que te aconteceu.


— Quem então? 


— Agora ele trabalha como investigador particular, seu nome é Norato — tirou da mochila um caderno de anotações e escreveu rapidamente — Esse é o endereço do escritório dele, se não me engano fecha as seis. 


— Tudo bem então, mas afinal porque me deu o endereço dele assim logo de cara? Aceitou rapidamente o fato de eu ter dito que não usei drogas e me indicou um detetive...


— Eu acredito que tu não tenhas usado droga, a sua situação me é bem familiar — o professor soltou uma grave gargalhada — Vai lá! Juro-te que ele não te chamará de louco, já está tarde, é hora de eu rasgar para o trabalho.      


Assim com a conversa encerrada, o professor Andrade se levantou e me cumprimentou antes de se retirar. Depois de dezessete longos minutos, sentado e refletindo, levantei-me e caminhei para a parada de ônibus mais próxima. Penso eu que deva compartilhar com você o que estive refletindo por todo esse tempo, já que não haveria graça alguma deixar o caro leitor no escuro. A primeira conclusão que pude obter foi "tudo o que houve foi real", se não como eu poderia explicar o relógio em meu bolso. E afinal, conseguia lembrar-me de tudo, da voz da dama, de seu olhar, de seu encanto e até mesmo de seu toque. A segunda conclusão que obtive é que hoje a criança na foto deva ter 95 anos, se formos calcular que o ano gravado no relógio seja o ano de seu nascimento. Aceito a suposição de ele ainda está vivo, já que a dama me disse que ele me daria algo de presente.


Já na parada, subi no primeiro ônibus que estava indo para a Av. Nazaré, assim que desci do ônibus caminhei por um tempo até chegar à frente de um casarão. Havia na porta de madeira pintada de verde uma placa onde estava escrito, "Serpentacões".  Se você achou o nome da placa estranho, devia ter visto como era dentro. O assoalho de madeira todo envernizado rangia conforme eu andava por ele, o papel de parede imitava o couro de cascavel, havia uma mesa de madeira de mogno, duas cadeiras também de mogno para clientes que eram acolchoadas com algo que imitava uma onça pintada e uma cadeira para o dono do lugar acolchoada com o couro de um píton. 


O lugar parecia estranhamente vazio, foi então que entrou por uma porta atrás da mesa um homem de cerca de 30 anos. Não estava nem um pouco formal, exibia um enorme colar de dentes em seu pescoço, tatuagens no formato de couro de sucuri cobriam seus dois braços, também apresentava traços predominantemente indígenas e usava uma camisa com um enorme logotipo da marca Cobra D'água. 


— Boa tarde! Tu és o investigador Norato? — perguntei me aproximando da mesa.


— Sim, sou eu mesmo. Tem algum caso que deseja que eu investigue? — respondeu-me Norato.


— Não exatamente, um amigo meu te recomendou e disse que podia me ajudar com algo.


— E esse teu amigo, quem ele é? Só pra saber se eu o conheço!


— O professor Antônio Andrade!


— Andrade! Ele é um velho amigo, te senta ai que eu já volto! — ele pareceu um pouco surpreso ao ouvir o nome do professor.


Saiu novamente pela porta detrás da mesa, estava com uma leve expressão de espanto. Sentei-me em uma das cadeiras enquanto esperava por ele, logo ele retornou com um caderno de anotações e uma caneta. Sentou se na sua cadeira e disse para que eu começasse a falar, e assim o fiz. Contei tudo o que ocorreu na noite passada, sem esquecer nem um mínimo detalhe. Ao final da minha historia, pude notar que ele havia escrito tudo o que eu disse no caderno.
Por fim ele olhou-me com atenção pela primeira vez, senti que estava me analisando, procurando por alguma coisa especifica. Terminou sua analise e escreveu algo em seu caderno — Qual teu nome mesmo? — perguntou-me rapidamente.


— Me chamo Tarcísio!


— Certo Tarcísio. Vou começar a investigar isso hoje mesmo. Por favor, se algo estranho voltar a acontecer, me ligue — retirou um cartão do bolso e entregou-me, nele tinha seu numero de telefone.


— Tá, mas...  O que exatamente você vai investigar? 


— Vou tentar explicar do jeito mais simples pra você, preste bastante atenção, por favor — ele se inclinou para a frente na mesa cruzando os dedos e me olhando gentilmente — Você foi encantado! Sei que vai ser difícil entender agora, mas, com o devido tempo tudo vai se encaixar pra você. A dama que te encontrou na doca é um espirito da natureza, os mais velhos a chamam de "Mãe do Rio". Geralmente casos de encantamentos são comuns, entretanto, sinto algo de especial no seu caso e quero investigar mais a fundo, volte, por favor, amanhã às cinco da tarde para conversarmos. 

Ele se levantou graciosamente e estendeu a mão para um ultimo cumprimento.

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⏰ Última atualização: Feb 21 ⏰

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Crônicas folclóricas: O relógio encantadoOnde histórias criam vida. Descubra agora