Canto 1 - A Dama Do Rio

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Você já percebeu a beleza de uma tarde de Setembro? Já parou por um instante para observar o quão lindo é o anoitecer em Belém? E quando eu digo observar não estou me referindo a apenas olhar o sol se por, estou me referindo a julgar com o olhar de um poeta. Deixar-se levar pelos sentimentos que esta terra morena pode lhe proporcionar é um caminho sem volta, e você pode ser levado para sempre por essas águas sedutoras. 


Meu nome é Tarcísio, e nesse momento estou sendo levado por uma enorme correnteza de acontecimentos que para você seriam apenas alucinações de um jovem louco. Creio que para essa narrativa se tornar interessante, deves ter em mente que nunca estive tão lucido sobre os fatos que ocorrem em minha volta. Não deixe, por favor, que meus costumes um tanto peculiares deturpem minha imagem.


Eu estava dentro de um ônibus lendo mais uma vez meu caso preferido de Sherlock Holmes, entretido na fantástica narrativa de Sir Arthur Conan Doyle quase perco a parada em que devia descer. Eu estava agora na Avenida Boulevard Castilho França, havia acabado de sair da faculdade e estava indo me encontrar com minha namorada Rosa.


Entrei na Estação das Docas com pressa, fui ao banheiro e vesti uma camisa social vermelha e meu suspensório. Ela sempre diz que eu fico um charme com essa combinação, e se tem uma coisa que eu gosto de fazer é ficar charmoso perto dela. Saí do banheiro e sentei-me em uma mesa de frente para a Baía do Guajará. A vista que se pode obter do lugar em que estava, em minha opinião, supera qualquer sentimento que se possa obter usando um entorpecente. Os últimos raios de sol iluminavam as águas e a neblina que tinha ficado da chuva que caíra a pouco deixaram me extasiado a ponto de nem por um minuto poder tirar os olhos dessa imagem, privilegiados são os que podem vê-la desta mesma maneira. 


Eis que surge uma sombra vagando pela nevoa, pensei a principio ser um barco, porém seu formato não era o de um. Pensei então que era apenas uma boia marítima, mas também não havia de ser. Cerrei meus olhos ao máximo para identificar o que era, e por um momento pude ver sua verdadeira forma - É uma mulher! - Não uma mulher comum, era diferente, não só por ser indígena ou por estar caminhando sobre as águas. Tinha em seu rosto uma expressão serena e persuasiva, olhava-me diretamente assim como eu fazia a ela. Seu corpo estava nu e coberto de pinturas que logo reconheci como sendo Tupinambá, entretanto a tinta não era de jenipapo nem nada parecido. Era brilhante de um tom verde florescente, não parecia nem mesmo ser tinta. Quando voltei a olhar o seu rosto ela me lançou um sorriso, começou a caminhar na minha direção trazendo a névoa consigo. Levantei-me da cadeira em que eu estava sem tirar os olhos dela, caminhei vagarosamente até o parapeito da orla enquanto ela também se aproximava. Olhei para os lados por um breve momento à procura de outro alguém que estivesse vendo o mesmo que eu, mas não havia mais ninguém ali que pudesse prestar atenção em qualquer coisa. Ao olhar novamente para a água, lá estava ela bem na minha frente. Seu rosto estava praticamente colado ao meu, não posso negar que tudo o que pude sentir foi medo. Um sentimento puramente congelante subiu minha coluna e tomou conta das minhas vertebras, mas depois que vi o seu rosto bem de perto o medo se tornou curiosidade. Como poderia eu sentir medo de algo tão belo? 


Tudo ficou escuro. Não havia mais nada ao meu redor, apenas eu e a dama do rio. Ela estendeu sua mão e nela havia um relógio de bolso, e com a voz mais doce que ouvi em toda minha vida, ela pediu que eu o pegasse. Nem um louco recusaria esse pedido. Tomei o relógio em minhas mãos e o abri, a hora estava ajustada e uma pequena foto estava na tampa. Era um garoto, não devia ter mais que 10 anos na foto. Assim que fechei o relógio a dama do rio me abraçou, senti sua mão acariciar meus cabelos e sua boca encostar em meu ouvido. Provocou-me uma sensação de arrepio que nunca poderei descrever, e por fim sussurrou - Não deveis aceitar o presente que ele lhe dará, só assim poderás salvar teu povo.


Assim a dama do rio se foi, me deixando em um vazio escuro e absoluto.

Crônicas folclóricas: O relógio encantadoOnde histórias criam vida. Descubra agora