𝕺𝖓𝖈𝖊 𝖀𝖕𝖔𝖓 𝕬 𝕷𝖔𝖓𝖌 𝕬𝖌𝖔

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Erie Raikkonen, minha dona, vivia com seu pai na colônia. Ela era uma menina sozinha, que passava as tardes após a escola brincando com bonecas ou me mimando, dado o fato de que tinha pouquíssimas amigas. Gostava de ler contos de fadas, desde os clássicos aos mais modernos, e se deixava cair nas asas mansas da imaginação, esquecendo de tudo que lhe causava incômodo, como a falta da mãe, á quem não via desde muito nova. Andava pelos níveis esbranquiçados e límpidos, no meio de adultos de jalecos, cantarolando músicas que ouvira nos filmes de suas princesas favoritas. Era estranho ver em uma sociedade tão tecnológica uma criança que apreciasse o raro hobbie de ler livros feitos de papel ao invés de e-books ou coisas do tipo, e isso de certa maneira a afastava de seus colegas. No fundo, ela realmente não importava. Tudo ia bem, desde que houvesse uma história para encenar no gramado que ficava na praça do setor leste, onde havia a quietude. 

Era uma manhã qualquer, e Erie passeava por sua praça favorita como sempre, cantarolando as mesmas músicas, me levando por aí com uma dessas coleiras peitorais usadas por cachorros (sim, sou um pássaro grande), despreocupada. Seu pai recebeu a visita de um de seus velhos amigos, e ele conversava com a visita em um banco não muito longe dali sobre uma tal "terra brasillis" ou algo assim. Perto do tal amigo, havia um menino franzino.

- Vai lá brincar com a pequena Erie, filho. O passarinho não vai te morder. - ele disse ao garoto, apontando para nós.

E o menino veio, receoso. Poderia descrevê-lo como uma bandeira de pirata: só o pano e os ossos de tão magro. Ele chegou perto de minha dona, me olhando como se eu fosse arrancar suas entranhas.

- Oi, eu sou a Erie! - minha dona disse á ele, com certo entusiasmo. Que raro, vê-la amigável com outra criança. Provavelmente deve ser pelo modo de se comportar dele que é semelhante ao seu, sendo mais fácil de nascer um coleguismo ou uma amizade.

-Oi. 

- Como você se chama?

- Kilroy.

- Kilroy... Kilroy... Kilroy... - ela repetiu, sacudindo na ponta da língua os sons que lhe eram novos, acentuando as sílabas. - Que nome mais engraçado...

- É estranho?

- Não,só é engraçado. Eu nunca ouvi um nome assim. 

- Acontece. 

- Meu pai disse que nomes únicos fazem de você uma pessoa muito, muito especial.

- Verdade...?

- Verdade verdadeira. Ei, Kilroy?

- Hm?

- Quer brincar?

- De quê?

- Sei lá.

- Escolhe aí, qualquer coisa pra mim tá bom.

- Hum... Eu gosto de brincar de casinha, mas talvez você não goste... Er... Você escolhe. Papai disse que é bom ser gentil com as visitas.

- Tá bem então. Vamos brincar de contar estrelas.

- Mas tá de dia ainda.

- Talvez. Lá fora, no espaço, não importa se é de manhã, de tarde ou de noite, pode em volta e sempre haverão estrelas pra contar.

- Mas não dá pra ver elas daqui. - Erie para por um instante e pensa. - Que tal contarmos nuvens? São só hologramas, mas ainda são nuvens.

- Eu não sou muito fã dessas nuvens. São muito brancas. Eu gosto mais das coloridas que tem no espaço, feitas de poeira estelar.

- Então o que vamos contar? Você não quer estrelas, nem nuvens. Prefere ovelhas?

- Não. Que tal contarmos sonhos?

- Sonhos? Mas eu não me lembro de quantas vezes eu sonhei.

- Me conta os seus sonhos que eu conto os meus. Pode ser?

- Pode!

Os dois se sentaram na grama. Erie me colocou no colo, e ficou acariciando minha cabeça enquanto decidia quem iria começar á contar.

- Erie, qual é o seu sonho?

- Ter mais de mil amigos penosos! 

- Só?

- Não, isso é só um deles. Meu maior sonho é conhecer um príncipe encantado e viver feliz para sempre.

- Talvez vá se realizar, mas pra isso você precisa ficar mais velha. Tipo, quase adulta.

- Eu sei, sabichão. E o seu sonho?

- Meu sonho é encontrar o maior mistério do universo, a tal da matéria escura. Ninguém nunca soube o que ela é. Meu pai me disse que pode ser um tesouro, o próprio espaço, qualquer coisa muito absurda e estranha.

-E o que você vai fazer se achar ela?

- Realizar meus outros sonhos, oras.

- Ah... 

- O que foi?

- Se você for pro espaço achar essa coisa escura, promete que vai me trazer uma estrela?

- Eu trago. Tem tantas lá fora que se eu roubasse uma não iria fazer diferença.

- Mas meu pai disse que estrelas são MUITO grandes.

- Eu vou trazer a estrela. É uma promessa, e eu sou um homem de honra. Mas eu vou querer um presente em troca.

- Que presente?

- Qualquer coisa.

Erie se levantou, ajeitou a roupa e foi correndo para casa. Alguns minutos mais tarde, voltou com um longuíssimo cachecol verde-escuro, de um tecido muito belo.

- Toma. É seu agora.

- Mas...

- Eu não preciso dele, e além disso, o espaço é frio, e você é magrinho, então é bom ter algo quentinho pra não virar picolé de gente.

- Obrigado. - ele deu um leve abraço nela, sendo tão ligeiro que no mesmo segundo que a tocou, acabou soltando-a, com a cara corando. 

- MENINO!! - chamou Timo, o tal amigo que veio visitar, pai do Kilroy.

- Oops, meu pai tá chamando.

- Você promete que vai voltar, Kilroy?

- Claro. Vai demorar, mas eu volto. Erie, - ele disse baixinho, segurando as mãos dela. - você é a minha primeira amiga, e eu nunca vou te esquecer. Vou guardar seu cachecol para tooodo o sempre.

- Eu nunca vou te esquecer também. - ela respondeu, tristonha.

- Não fica triste, Erie. Isso não é um adeus, é só um "até logo".

Kilroy foi-se embora. Um sorriso ilumina o semblante de minha dona, que acena incansavelmente com seus bracinhos. Naquele momento, tive a impressão de que algo muito maior nasceria daquele encontro. Só o tempo diria se esses dois teriam seus caminhos se encontrando na encruzilhada da vida....  Sabe, me parecia que era hora dela parar de ler os contos de fadas para começar os seus próprios, que seriam contados conforme o tempo virava as páginas do destino.


𝕊𝔸𝕋𝕌ℝℕ𝕆Where stories live. Discover now