... Pois enquanto ela ainda está aqui-tudo bem: me aproximo e olho a cada
instante; só que amanhã vão levar embora e-como é que eu vou ficar sozinho?
Ela agora está na sala sobre a mesa, juntaram duas mesas de jogo (No original,
lômbiernii, do castelhano (l')hombre, nome de um jogo de cartas. Por extensão,
qualquer mesa de jogo retangular, dobrável, revestida de feltro. (N. do T.)), e o
caixão vai ser amanhã, branco, um gros de Naples (No original, grodenápl,
forma russificada dessa expressão francesa, nome de uma espécie de tecido
sedoso grosso. (N. do T.)) branco, e, aliás, nem se trata disso... Eu não paro de
andar e querer esclarecer tudo para mim. Pois já faz seis horas que eu quero ver
claro e não encontro meio de juntar as ideias num ponto. O fato é que eu não
paro de andar, andar, andar... Eis como isso aconteceu. Vou simplesmente
contar na ordem (ordem!). Senhores, estou longe de ser um literato, e os
senhores podem ver isso, mas não importa, vou contar assim como eu mesmo
entendo. É aí que está todo o meu horror, eu entendo tudo!
Se querem saber, ou melhor, se é para começar bem do começo, ela vinha
então à minha casa, muito sem cerimônia, penhorar objetos para pagar um
anúncio no A Voz (No original, Gólos, importante periódico semanal da época,
lido regularmente por Dostoiévski. (N. do T.)), que dizia que, bem, assim assim,
preceptora, à disposição inclusive para viajar, dar aulas em domicílio etc., etc.
Isso foi bem no começo, e eu, é claro, não a distinguia dos outros: chega como
todo mundo, bem etc. Mas depois passei a distingui-la. Ela era franzina, loirinha,
de estatura um pouco acima da mediana; comigo era sempre desajeitada, como
se se perturbasse (acho que com todos os estranhos ela era assim também, e eu,
é lógico, era para ela a mesma coisa que esse ou aquele, se tomado não como
penhorista, e sim como homem). Mal recebia o dinheiro, no mesmo instante
virava as costas e ia embora. E sempre calada. Os outros tanto discutem, pedem,
pechincham para que lhes deem mais; essa aí não, o que lhe derem... Sempre
acho que estou me atrapalhando todo... Sim; o que me surpreendeu antes de mais
nada foram os seus objetos: brinquinhos de prata banhados em ouro, um
medalhãozinho chinfrim-objetos de vinte copeques. Ela mesma sabia que
valiam quando muito dez copeques (No original, gríviennik, "moeda de dez
copeques". Os "vinte copeques" logo acima são o valor de um dvugríviennii
(dvu, dois). (N. do T.)), mas pelo seu rosto eu via que para ela eram uma
preciosidade-e de fato isso era tudo o que lhe tinha ficado do seu papácha e da
sua mamácha (Neologismos afetivos: "papai" e "mamãe". (N. do T.)), como
soube depois. Uma única vez me permiti sorrir diante dos seus objetos. Isto é,
vejam só, nunca me permito uma coisa dessas, tenho com a clientela um tom de
gentleman (No original, forma russificada dessa palavra inglesa. (N. do T.)):
poucas palavras, cortês e severo. "Severo, severo e severo." (Citação imprecisa
de O capote (1842), de Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852). A Dostoiévski se
atribui uma das máximas da história literária russa: "Todos nós saímos do Capote
de Gógol". (N. do T.)) Mas ela de repente se permitiu trazer os restos (isto é,
literalmente) de um velho casaquinho curto (No original, kutsavéika, palavra
cuja raiz é o adjetivo kútsii, "de rabo curto ou cortado", aplicável tanto a roupas
quanto a ideias. (N. do T.)) de pele de lebre-e eu não aguentei e de repente lhe
disse qualquer coisa, a título de gracejo. Meu Deus, como ela enrubesceu! Os
seus olhos são azuis, grandes, pensativos, e-como pegaram fogo! Mas não
deixou escapar uma palavra, pegou os seus "restos" e-saiu. Foi aí que pela
primeira vez eu a notei particularmente e pensei a seu respeito algo no gênero,
isto é, precisamente algo num gênero particular. Sim: ainda me lembro da
impressão, isto é, se quiserem, da impressão mais essencial, a síntese de tudo: a
bem dizer, que era terrivelmente jovem, tão jovem que parecia ter quatorze
anos. E no entanto faltavam então três meses para os seus dezesseis anos. Aliás,
não era isso o que eu queria dizer, a síntese não estava em nada disso. No dia
seguinte apareceu de novo. Soube depois que ela tinha ido a Dobronrávov e a
Moser com o casaquinho, mas esses, exceto ouro, não aceitam nada, e não
quiseram conversa. Uma vez cheguei a aceitar dela um camafeu (chinfrim
também)-e, ponderando, depois me espantei: eu, exceto ouro e prata, também
não aceito nada, mas dela admiti um camafeu. Esse foi então o meu segundo
pensamento sobre ela, isso eu lembro.
Dessa vez, isto é, tendo passado por Moser, ela trouxe uma piteira de charuto
de âmbar-uma pecinha de nada, para amadores, mas para nós novamente sem
valor nenhum, porque conosco-só ouro. Como ela vinha já depois da revolta da
véspera, eu a recebi com severidade. Severidade, comigo-é secura. Não
obstante, ao lhe dar dois rublos, não aguentei e disse, como que com uma certa
irritação: "Veja que só faço isso para a senhora, um objeto assim Moser não
aceitaria". As palavras: "para a senhora", sublinhei-as de modo particular, e
mais precisamente num certo sentido. Fui mau. Ela enrubesceu de novo ao ouvir
esse para a senhora, mas calou-se, não largou o dinheiro, aceitou-o-o que não é
a pobreza! E como enrubesceu! Vi que lhe tinha dado uma alfinetada. E, quando
ela já tinha saído, de repente me perguntei: será então que essa vitória sobre ela
vale dois rublos? Eh, eh, eh! Lembro que fiz duas vezes justamente essa pergunta:
"Será que vale? será que vale?". E rindo decidi comigo mesmo pela afirmativa.
eu fiquei bem alegre na ocasião. Mas não era um sentimento ruim: eu tinha uma
intenção, um propósito; queria colocá-la à prova, porque de repente começaram
a me fermentar certos pensamentos a seu respeito. Esse foi o meu terceiro
pensamento particular sobre ela.
... Enfim, foi desde então que tudo começou. Logicamente, procurei logo me
informar de todas as circunstâncias por via indireta e esperava a sua chegada
com particular impaciência. Eu já pressentia que ela estava por vir. Quando ela
chegou, entabulei uma conversa amável, com uma cortesia fora do comum. Pois
recebi uma educação digna e tenho maneiras. Hum. Foi aí que adivinhei que ela
era boa e dócil. Os bons e dóceis não resistem por muito tempo, e, embora nunca
sejam de se abrir muito, não sabem de jeito nenhum esquivar-se da conversa:
respondem com parcimônia, mas respondem, e quanto mais longe se vai,
melhor, apenas não se deixem cansar, se convém aos senhores. É lógico que
nesse tempo ela mesma não me explicou nada. Foi só mais tarde que fiquei
sabendo a respeito de A Voz e de tudo o mais. Ela então publicava os anúncios
com os seus derradeiros recursos, de início, logicamente, com soberba:
"preceptora, dizia, à disposição para viajar, enviar condições pelo correio", mas
depois: "à disposição para tudo, dar aulas, dama de companhia, fazer o trabalho
de casa, tomar conta de doentes, sei costurar" etc., etc., a velha história de
sempre! Logicamente, tudo isso ia sendo acrescentado ao anúncio em várias
ocasiões, e no final, quando já estava à beira do desespero, até mesmo "sem
ordenado, pelo pão". Não, não arranjou emprego! Decidi então colocá-la à
prova pela última vez: de repente apanho o A Voz do dia e lhe mostro um anúncio:
"Pessoa jovem, órfã de pai e mãe, procura emprego de preceptora de crianças
pequenas, preferencialmente em casa de viúvo de mais idade. Pode ajudar no
trabalho de casa".
- Veja só, essa pôs anúncio hoje de manhã, e à noite provavelmente já
arranjou emprego. É assim que se deve anunciar!
De novo enrubesceu, de novo os olhos pegaram fogo, virou as costas e foi
embora no mesmo instante. Isso me agradou muito. Aliás, eu então já tinha
certeza de tudo e não receava: piteiras é que ninguém iria aceitar. E nem piteiras
ela tinha mais. Foi isso mesmo, aparece no terceiro dia, tão palidazinha, tão
agitada-vi que alguma coisa havia acontecido na sua casa, e realmente havia
acontecido. Já explico o que havia acontecido, mas agora quero apenas recordar
como eu então de repente fiz bonito diante dela e cresci aos seus olhos. Foi essa
intenção que me veio de repente. O fato é que ela trouxe esse ícone (decidiu
trazê-lo)... Ai, escutem! escutem! Agora sim é que tudo começa, é que até aqui
eu só me atrapalhava... O fato é que agora quero recordar tudo isso, cada
minúcia, cada fiozinho. Não paro de querer juntar as ideias num ponto e-não
consigo, e há esses fiozinhos, esses fiozinhos...
O ícone da Virgem. A Virgem com o Menino, doméstico, familiar, antigo,
adorno de prata banhado em ouro-vale-digamos, vale uns seis rublos. Vejo
que o ícone lhe é caro, está penhorando o ícone todo, não tira o adorno. Digo-lhe
que seria melhor se ela tirasse o adorno e levasse o ícone; porque um ícone,
afinal de contas, não fica bem.
- E por acaso é proibido para o senhor?
- Não, não é que seja proibido, é que, talvez, para a senhora mesma...
- Então tire.
- Sabe de uma coisa, eu não vou tirar, vou colocar bem ali no oratório (No
original, kiót, uma espécie de caixilho para ícones. (N. do T.))-disse eu, depois
de pensar um pouco-com os outros ícones, à luz da lamparina (desde que abri a
caixa de penhores, deixava sempre uma lamparina acesa), e tome aqui dez
rublos, não faça cerimônia.
- Eu não preciso de dez, o senhor me dê cinco, vou resgatar sem falta.
- Mas não quer os dez? O ícone vale-acrescentei eu, notando que os seus
olhinhos brilharam novamente. Ela se calou. Eu lhe saquei cinco rublos.
- Não desdenhe ninguém, eu mesmo estive em tais agruras, ou até piores, e
se agora a senhora me vê nessa ocupação... isso foi depois de tudo o que eu
sofri...
- O senhor se vinga da sociedade? É isso?-atalhou-me de repente com uma
zombaria bastante mordaz, na qual havia, aliás, muito de ingênuo (isto é, de
genérico, porque naquele tempo ela decididamente não me distinguia dos outros,
de modo que falou quase sem maldade). "A-ha!"-pensei eu-"então é assim
que você é, o caráter se manifesta, com nova direção."
- Veja-observei eu de imediato, meio brincalhão, meio enigmático.-"Eu
-eu sou uma parte daquela parte do todo que quer fazer o mal, mas cria o
bem..."
Ela olhou para mim rapidamente e com grande curiosidade, na qual, aliás,
havia muito de infantil:
- Espere um pouco... Que ideia é essa? De onde é que vem? Eu ouvi isso em
algum lugar...
- Não precisa quebrar a cabeça, com essa expressão Mefistófeles
apresenta-se a Fausto (Citação imprecisa da seguinte passagem do Fausto,
primeira parte (1808), de Johann Wolfgang von Goehte (1749-1832) , na
tradução de Jenny Klabin Segall: "Sou parte da Energia/ Que sempre o Mal
pretende e que o Bem sempre cria" (Fausto I, São Paulo, Editora 34, 2004, vv.
1.335-6, cena "Quarto de trabalho"). (N. do T.)). Já leu Fausto?
- Não... sem muita atenção.
- Quer dizer que nunca leu. Precisa ler. E, aliás, vejo de novo nos seus lábios
uma ruga de zombaria. Por favor, não imagine que eu tenha um gosto tão
duvidoso que, para pintar o meu papel de penhorista, quis me apresentar à
senhora como Mefistófeles. Um usurário vai ser sempre um usurário. Sabemos
bem.-
O senhor é um tanto estranho... Eu não queria lhe dizer nada disso, de jeito
nenhum...
Ela queria dizer: eu não esperava que o senhor fosse um homem culto, e não
disse, mas em compensação eu sabia que ela pensara isso; acertei em cheio no
que lhe agradava.
- Veja-observei eu-em qualquer ramo de atividades pode-se fazer o
bem. É claro que não falo de mim, eu, exceto o mal, convenhamos, não faço
nada, mas...
- É claro que se pode fazer o bem em qualquer situação-disse ela,
lançando-me um olhar rápido e penetrante.-Sobretudo em qualquer situação-
acrescentou de repente. Ah, eu me lembro, eu me lembro de todos esses
momentos! E quero ainda acrescentar que, quando essa juventude, essa querida
juventude, almeja dizer alguma coisa assim inteligente e penetrante, então de
repente mostra na cara sincera e ingenuamente demais que "aí está, diz ela,
estou lhe dizendo agora algo inteligente e penetrante"-e não é por vaidade como
os nossos iguais, mas se vê bem que ela mesma dá extremo valor a tudo isso, e
acredita, e respeita, e pensa que os senhores também respeitam tudo isso assim
como ela. Ah, a sinceridade! É precisamente com isso que vencem. E nela como
isso era encantador!
Eu me lembro, não me esqueci de nada! Quando ela saiu, decidi-me de uma
vez. Naquele mesmo dia fui até as últimas buscas e descobri o restante de todos
os podres nos quais ela estava metida agora; dos podres do passado eu já sabia
tudo por Lukéria, que servia então na casa delas e que eu já subornara dias antes.
Esses podres eram tão horríveis que não consigo entender como ainda era
possível rir do jeito que rira havia pouco e sentir curiosidade pelas palavras de
Mefistófeles, estando ela mesma no meio de tal horror. Mas-a juventude! Foi
justamente isso que pensei então sobre ela com orgulho e alegria, porque aí é que
estava a generosidade: quer dizer, mesmo à beira da ruína, as grandes palavras
de Goehte resplandecem. A juventude, ainda que só uma gotinha e ainda que
pelo caminho torto, sempre é generosa. Ou seja, é sobre ela que estou falando,
sobre ela apenas. E o principal é que eu então a olhava como sendo minha e não
duvidava do meu poder. Sabem, quando já não se tem dúvidas, é voluptuoso esse
pensamento.
Mas o que há comigo. Se eu continuar assim, quando é que vou juntar tudo
num ponto? Depressa, depressa-não é absolutamente nada disso, ah meu Deus!