SEMPRE PLANOS E MAIS PLANOS

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Quem de nós começou primeiro?
Ninguém. Tudo começou por si só desde o primeiro passo. Eu disse que a
trouxe para casa debaixo de severidade, e no entanto desde o primeiro passo
abrandei. Ainda quando ela era noiva, foi-lhe explicado que se ocuparia da
recepção dos penhores e da saída do dinheiro, e ela então não disse nada (notem
isso). E mais ainda—mostrou inclusive dedicação ao negócio. Bem, é claro, o
apartamento, a mobília—tudo permaneceu como antes. O apartamento—são
dois cômodos: um deles—uma grande sala, onde há uma separação para a caixa,
e o outro—grande também, é o nosso cômodo, em comum, é aqui o dormitório.
A minha mobília é modesta; até mesmo a das tias era melhor. O meu oratório
com a lamparina—fica na sala, onde está a caixa; no meu cômodo tenho o meu
armário, com alguns livros nele, e uma pequena arca, cujas chaves ficam
comigo; bem, ali há uma cama, mesas, cadeiras. Ainda quando ela era noiva,
disse-lhe que para o nosso sustento, isto é, para a comida, a minha, a dela e a de
Lukéria, que eu tinha arrebanhado de lá, reservava-se não mais do que um rublo
por dia: "Preciso, digo eu, de trinta mil em três anos, e de outro modo não se faz
dinheiro". Ela não protestou, mas eu mesmo aumentei a quantia em trinta
copeques. Assim também com o teatro. Eu tinha dito à minha noiva que não
haveria teatro, e no entanto determinei que houvesse teatro uma vez por mês, e
decentemente, com cadeiras de plateia. Fomos juntos, três vezes, vimos Em
busca da felicidade (Drama de P. I. Iurkiévitch, morto em 1884. (N. do E.)) e
Aves canoras (La Périchole (1868) opereta de Jacques Offenbach (1819-1880),
com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, baseado em Le Carosse du
Saint-Sacrement, de Prosper Mérimée. (N. do T.)), se não me engano. (Ah, que
se dane, que se dane!) Íamos calados e calados voltávamos. Por que, por que
desde o começo entramos a ficar calados? Pois no começo não havia brigas, mas
também havia silêncio. Ela então, eu me lembro, sempre arranjava um jeito de
me lançar um olhar de soslaio; assim que notei isso, só redobrei o silêncio. É
verdade, fui eu que insisti no silêncio, e não ela. Da sua parte, uma vez ou duas
houve arroubos, corria a me abraçar; mas, como esses arroubos eram doentios,
histéricos, e eu necessitava de uma felicidade sólida, que contasse com o seu
respeito, recebia-os com frieza. E eu tinha mesmo razão: depois de cada arroubo
havia uma briga no dia seguinte.
Isto é, novamente não havia briga, mas havia o silêncio e—e cada vez mais e
mais um ar de atrevimento da sua parte. "Revolta e independência!—eis o que
houve, só que ela não sabia como fazer. Sim, esse rosto dócil tornava-se cada vez
mais e mais atrevido. Acreditem, eu me tornava intolerável para ela, observei
isso muito bem. E, quanto ao fato de que ela ficava fora de si nos seus arroubos,
não havia dúvidas. Mas como, tendo saído de tanta lama e miséria, depois de
lavar o chão, foi de repente torcer o nariz para a nossa pobreza! Mas vejam: não
era pobreza, era economia, e no que fosse preciso—havia luxo até, na roupa, por
exemplo, na limpeza. Ainda antes sempre fantasiei que a limpeza do marido
seduz a mulher. Aliás, ela não torcia o nariz para a pobreza, e sim para a minha
suposta mesquinhez na economia: "tem objetivos, diz ela, demonstra firmeza de
caráter". De repente renunciou por conta própria ao teatro. E aquela ruga ia se
tornando cada vez mais e mais zombeteira... enquanto que eu redobrava o
silêncio, enquanto que eu redobrava o silêncio...
Não deveria me justificar? Aí é que está o principal—essa caixa de penhores.
Mas os senhores me permitam: eu sabia que uma mulher, e ainda por cima de
dezesseis anos, não pode deixar de se submeter inteiramente ao homem. Nas
mulheres não há originalidade, isso—isso é um axioma, inclusive agora isso é
para mim um axioma! O que é aquilo que jaz lá na sala: a verdade é a verdade,
e nesse caso o próprio Mill (John Stuart Mill (1806-1873), filósofo e economista
inglês, autor, entre outras obras, de Princípios de economia política (1848) e
Utilitarismo (1861). Aqui o narrador se refere a A submissão das mulheres (1869),
obra na qual se podem ler defesas como esta: "Quão imenso é o número de
homens, em qualquer grande nação, que são pouco mais do que bestas
selvagens... Isso jamais os impede, pelas leis do matrimônio, de conseguir uma
vítima... O mais desprezível dos crápulas traz amarrada a si uma mulher
miserável, contra quem pode cometer qualquer atrocidade, exceto matá-la—e
até isso pode fazer, sem grande risco de receber punição legal". Ver John Stuart
Mill, On Liberty & The Subjection of Women, Wordsworth Editions, 2001. (N. do
T.)) não poderia fazer nada! E uma mulher que ama, ah, uma mulher que ama—
vai endeusar até mesmo os vícios, até mesmo os crimes do ser amado. Ele
próprio seria incapaz de arranjar as justificativas que ela vai lhe dar para os seus
crimes. Isso é generoso, mas não é original. O que arruinou a mulher foi
unicamente a falta de originalidade. E o que é, repito, o que é que os senhores
estão me apontando lá em cima da mesa? E por acaso é original o que está lá em
cima da mesa? Ah-ah!
Escutem: eu então estava certo do seu amor. Pois mesmo então ela se jogava
no meu pescoço. Amava, ou melhor—desejava amar. Sim, era assim mesmo:
desejava amar, procurava amar. Mas o principal é que aqui não havia crime
nenhum para o qual ela tivesse que buscar justificativas. Os senhores dizem: um
usurário, e todos dizem isso. E daí que seja um usurário? Se o mais generoso dos
homens tornou-se um usurário, quer dizer que havia motivos. Vejam, senhores,
há ideias... isto é, vejam, se uma determinada ideia for pronunciada, posta em
palavras, o resultado vai ser uma tremenda tolice. Uma vergonha para si mesmo
e por quê? Não há por quê. Porque todos nós somos um lixo e não suportamos a
verdade, ou então já nem sei. Acabei de dizer "o mais generoso dos homens".
Isso é ridículo, e no entanto era isso mesmo. É a verdade, isto é, a mais, a mais
verdadeira das verdades! Sim, eu tinha o direito de querer então me garantir e
abrir essa caixa: "Os senhores me repudiaram, os senhores, isto é, os homens,
vocês me enxotaram com um silêncio desdenhoso. Ao meu ímpeto apaixonado
na direção dos senhores, responderam-me com uma ofensa que ficou por toda a
minha vida. Agora eu, portanto, estaria no direito de me proteger dos senhores
com um muro, juntar esses trinta mil rublos e viver o resto dos meus dias em
algum lugar da Crimeia, na costa meridional, entre montanhas e vinhedos, na
minha propriedade, comprada com esses trinta mil, e principalmente longe de
todos vocês, mas sem lhes guardar rancor, com um ideal na alma, com a mulher
amada no coração, com uma família, se Deus quisesse, e—ajudando aos
vizinhos da aldeia". Logicamente, ainda bem que estou falando isso agora apenas
comigo mesmo, pois não poderia haver tolice maior do que eu então ter-lhe
pintado tudo isso alto e bom som. Eis a razão do silêncio orgulhoso, eis a razão de
ficarmos calados. Porque, afinal, o que é que ela iria entender? Dezesseis anos, a
flor da juventude—o que é que ela poderia entender das minhas justificativas,
dos meus sofrimentos? Nela estavam a retidão, a ignorância da vida, as
convicções baratas da juventude, a cegueira da galinha dos "corações de ouro",
e o principal aqui—a caixa de penhores e—basta (e por acaso eu era algum
facínora na caixa de penhores, por acaso ela não via como eu me comportava,
ou se por acaso eu cobrava a mais?)! Ah, como é horrível a verdade sobre a
terra! Essa joia, essa dócil, esse céu—ela era um tirano, o insuportável tirano da
minha alma e o meu carrasco! Eu estaria caluniando a mim mesmo se não
dissesse isso! Vocês pensam que eu não a amava? Quem pode dizer que eu não a
amava? Vejam só: aqui há ironia, aqui se deu uma cruel ironia do destino e da
natureza! Nós somos malditos, a vida dos homens é maldita em geral! (A minha,
em particular!) Pois agora eu entendo que aqui devo ter cometido algum erro!
Algo aqui não saiu como devia. Tudo era claro, o meu plano era claro como o
céu: "Severo, orgulhoso e não carece dos consolos morais de ninguém, sofre
calado". E era assim mesmo, não menti, não menti!" "Ela vai ver depois por
conta própria que aqui houve generosidade, só que ela não foi capaz de perceber
—e, quando adivinhar isso um dia, vai dar dez vezes mais valor e vai
desmoronar, as mãos postas em súplica." Eis o plano. Mas aqui eu devo ter
esquecido ou perdido alguma coisa de vista. Alguma coisa aqui eu não soube
fazer. Mas chega, chega. E agora pedir perdão a quem? Se está acabado, está
acabado. Coragem, homem, e seja orgulhoso! O culpado não é você!...
Bem, então eu vou dizer a verdade, não vou ter medo de ficar face a face
com a verdade: ela é a culpada, ela é a culpada!...


UMA CRIATURA DÓCILWhere stories live. Discover now