PEDIDO DE CASAMENTO

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Os "podres" que descobri sobre ela, explico-os numa palavra: o pai e a mãe
tinham morrido, já fazia tempo, três anos antes, e ela ficou em casa de umas tias
desregradas. Ou melhor, é pouco chamá-las de desregradas. Uma das tias é
viúva, de família numerosa, seis filhos, um menor que o outro, a segunda é
solteirona, velha, sórdida. Ambas são sórdidas. O pai dela tinha sido funcionário
público, mas escrivão, e não passou de funcionário nobilitado (No original, lítchnii
dvorianín; literalmente, "nobre pessoal", ou seja, de nobreza adquirida, e não
herdada, e portanto sem títulos a herdar. O pai de Dostoiévski também estava
fadado a desfrutar desse tipo de "nobreza". (N. do T.))—numa palavra: tudo
estava na minha mão. Eu surgia como que de um mundo superior: em todo o
caso, um chtabs-capitán (Nas forças armadas tsaristas, patente militar superior à
de tenente e inferior à de capitão. (N. do T.)) reformado de um brilhante
regimento, nobre de nascença, independente etc., e, quanto à caixa de penhores,
as tias só podiam ver isso com respeito. Fazia três anos que estava com as tias em
regime de servidão, mas apesar de tudo foi aprovada num exame em algum
lugar—conseguiu ser aprovada, cavou tempo para ser aprovada, debaixo de um
trabalho diário impiedoso—o que da parte dela significava afinal alguma coisa na
aspiração ao que é supremo e nobre! Para que então eu queria me casar? Aliás,
quanto a mim, que se dane, isso é mais tarde... Não é disso que se trata! Dava
aulas para os filhos das tias, costurava a roupa, e no final não só lavava a roupa,
mas também, com aqueles seus pulmões, lavava o chão. Sem mais nem menos
até batiam nela, jogavam-lhe na cara o pão de cada dia. Acabaram fazendo
planos de vendê-la. Arga! omito a lama dos pormenores. Mais tarde ela me
contou tudo com minúcias. Tudo isso vinha sendo vigiado durante um ano inteiro
por um merceeiro gordo da vizinhança, mas não um merceeiro qualquer, e sim
um com duas mercearias. Ele já enterrara duas mulheres e procurava uma
terceira, de modo que não tirava o olho dela: "boazinha, diz ele, cresceu na
pobreza, enquanto que eu me caso por causa dos órfãos". De fato, ele tinha filhos
órfãos. Fez o pedido, começou a se entender com as tias, e além do mais—tinha
cinquenta anos; ela estava em pânico. Foi bem aí que passou a me visitar com
mais frequência em função dos anúncios no A Voz. Afinal, começou a pedir às
tias que lhe dessem pelo menos uma gotinha de tempo para pensar. Deram-lhe
essa gotinha, mas apenas uma, não deram outra, já foram mordendo: "Nós aqui
não sabemos o que é comer mesmo sem uma boca a mais". Eu já sabia de tudo
isso, mas foi depois da manhã daquele dia que me decidi. Naquela noite chegou o
comerciante, trouxe da venda uma libra (No original, funt, libra inglesa, unidade
de massa pouco inferior a meio quilo. (N. do T.)) de balas a cinquenta copeques
(No original, poltínnik, moeda de cinquenta copeques. (N. do T.)); ela fazia sala a
ele, e eu chamei Lukéria da cozinha e mandei que fosse lhe cochichar que eu
estava no portão e desejava lhe dizer algo de caráter muito inadiável. Fiquei
satisfeito comigo mesmo. E de modo geral passei todo aquele dia terrivelmente
satisfeito.
Ali mesmo no portão, ela já atônita por eu a ter mandado chamar, e diante de
Lukéria, expliquei-lhe que seria uma felicidade e uma honra... Em segundo lugar:
que não se espantasse com as minhas maneiras e com o fato de estar no portão:
"sou um homem, digo eu, franco, e estudei bem as circunstâncias do caso". E
não menti ao dizer que sou franco. Bem, que se dane. Falei não só de modo
decente, isto é, mostrando-me um homem de formação, mas também de modo
original, eis o que importa. O quê, será que é pecado confessar isso? Quero me
julgar e me julgo. Devo falar pro e contra (Em latim no original. (N. do T.)) e
falo. Mesmo mais tarde me lembrei daquilo com deleite, embora seja uma
tolice: declarei então com franqueza, sem nenhum embaraço, que, em primeiro
lugar, não era particularmente talentoso, nem particularmente inteligente, talvez
nem mesmo particularmente bom, um egoísta bastante barato (eu me lembro
dessa expressão, eu a cunhei então a caminho de lá e fiquei satisfeito) e que é
bem, bem possível que eu traga em mim muito de desagradável ainda em outros
aspectos. Tudo isso foi dito com um gênero particular de orgulho—sabe-se como
se costumam dizer essas coisas. É claro que tive a fineza de, ao declarar
nobremente os meus defeitos, não correr a declarar as qualidades: "mas, digo eu,
em vez daquilo, tenho isso e isso, isso e isso e isso e aquilo". Eu via que ela ainda
estava morta de medo, mas não abrandei nada, e, como se não bastasse, vendo
que ela estava com medo, endureci de propósito: disse francamente que estaria
bem alimentada, sim, mas que vestidos, teatros, bailes—não haveria nada disso, a
não ser talvez no futuro, quando tivesse atingido o meu objetivo. Esse tom severo
decididamente me encantava. Acrescentei, e também o mais breve possível,
que, se assumi tal ocupação, isto é, se sustento essa caixa de penhores, é apenas
porque tenho um objetivo, existe, digo eu, uma certa circunstância... Mas é que
eu estava no direito de falar assim: eu de fato tinha um tal objetivo e uma tal
circunstância. Esperem, senhores, eu fui o primeiro a detestar a vida inteira essa
caixa, mas na realidade, embora seja ridículo dizer frases enigmáticas a si
mesmo, eu me "vingava da sociedade" de fato, de fato, de fato! Portanto, o seu
gracejo da manhã a respeito de que eu "me vingo" tinha sido injusto. Isto é,
vejam só, se eu lhe tivesse dito francamente com todas as letras: "Sim, eu me
vingo da sociedade", ela cairia na gargalhada, como ainda de manhã, e seria
mesmo ridículo. Bem, ao passo que, com uma alusão indireta, lançada numa
frase enigmática, constatou-se que era possível subornar a imaginação. Além do
mais, eu então já não tinha medo de nada: pois sabia que o merceeiro gordo de
qualquer modo era para ela mais asqueroso que eu, e que eu, ali no portão, surgia
como um libertador. Eu entendia isso. Ah, as baixezas o homem entende
particularmente bem! Mas eram baixezas? Como é que se vai julgar um homem
nesse caso? Porventura eu já não a amava mesmo naquele momento?
Esperem: logicamente, não lhe disse então nem uma palavra sobre o favor;
ao contrário, ah, ao contrário: "sou eu, digo, que fico imensamente grato pelo
favor, e não a senhora". De modo que isso sim expressei até em palavras, não
aguentei, e saiu, talvez, uma tolice, porque notei uma furtiva ruga no seu rosto.
Mas no conjunto decididamente saí ganhando. Esperem, se é para recordar toda
essa lama, vou recordar até a última porcaria: eu estava ali parado, mas não
cabeça se remexia o seguinte: você é alto, esbelto, bem-educado e—e,
finalmente, para falar sem fanfarrice, você em si não é nada mau. Eis o que me
brincava na veneta. Ela, é lógico, ali mesmo no portão, me disse sim. Mas... mas
eu devo acrescentar: ali mesmo no portão, ela ficou muito tempo pensando antes
de dizer sim. Pensou tanto, pensou tanto, que eu já ia perguntar: "E então, como
é?"—e, não aguentando, perguntei muito chique: "E então, como é, senhorita?"—
com o "senhorita" de cortesia, inclusive (No original, slôvo-iers. Em russo, existe
uma partícula (um simples -s) que se pospõe com hífen às palavras para dar ao
discurso matizes de subserviência, gentileza ou ironia. Equivale remotamente às
nossas formas de tratamento tradicionais, como "senhor", "senhora" ou
"senhorita", e à expressividade com que a língua oral as investiu. O narrador aqui
descreve a sua própria fala, afirmando que reforçou a sua pergunta pelo uso
dessa partícula. (N. do T.)).
— O senhor espere, eu estou pensando.
E o seu rostinho era tão sério, mas tão sério—que já naquele momento eu
poderia ter lido tudo! Só que em vez disso eu me ofendia: "Será possível, penso
eu, que ela esteja escolhendo entre mim e o comerciante?". Ah, eu então ainda
não entendia! Eu então ainda não entendia nada, nada! Até hoje não tinha
entendido! Lembro que Lukéria saiu correndo atrás de mim quando eu já estava
indo embora, parou-me no caminho e disse afobada: "Deus lhe pague, meu
senhor, por levar a nossa senhorinha querida, só não vá dizer isso a ela, que ela é
orgulhosa".
Ora, orgulhosa! Eu, quer dizer, por mim, gosto das orgulhosinhas. As
orgulhosas são particularmente belas quando... bem, quando já não se duvida do
poder que se tem sobre elas, hein? Ah, que homem baixo, canhestro! Ah, como
eu estava satisfeito! Sabem, quando ela estava parada ali no portão toda pensativa
para me dizer sim, enquanto eu me espantava, sabem que ela poderia ter tido até
mesmo o seguinte pensamento: "Se a desgraça está aqui e lá, não é melhor
escolher logo o pior, isto é, o merceeiro gordo, que me mate o mais depressa
possível, morto de bêbado!". Hein? O que os senhores acham, poderia haver um
pensamento assim?
Só que mesmo agora não entendo, mesmo agora não entendo nada! Acabei
de dizer que ela poderia ter tido esse pensamento: entre as duas desgraças,
escolher a pior, isto é, o comerciante? Então quem era para ela o pior—eu ou o
comerciante? O comerciante ou o usurário que cita Goethe? Essa é ainda uma
questão! Que questão? Nem isso você entende: a resposta está em cima da mesa,
e você vem falar em questão! Mas eu que me dane! Não é absolutamente de
mim que se trata... A propósito, como é que eu fico agora—é ou não é de mim
que se trata? Isso é o que eu realmente não consigo decidir de jeito nenhum.

Seria melhor ir dormir. A cabeça dói...


UMA CRIATURA DÓCILWhere stories live. Discover now