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Minha família - ou o que restou dela - se reúne à mesa mas não se fala. Sequer abre a boca. Não somos quase nada além de aparências.

Olho pela janela e vejo meu pai ao longe, caminhando de costas pra mim, encurvado e com as mãos cravadas nos bolsos - já não sei se de frio ou tristeza.

Abro a porta principal de casa e vejo minha avó sentada na varanda, com o olhar perdido, sem nenhum resquício de paz.

Já fazem quatro anos, e cada vez mais nos tornamos sombras do que éramos antes. Podemos até achar que superamos e passar por momentos felizes, mas há dias em que a lacuna fica grande demais pra poder ser preenchida.

Olho pro espelho e consigo ouvir o barulhinho que as pulseiras da minha mãe faziam quando ela se mexia, como se estivesse prestes a aparecer atrás de mim, do jeito que sempre fazia, pra perguntar o que eu encaro tão séria. Digo a ela que estou com saudades, e as lágrimas caem. A sensação de estar falando com o vazio me derruba, e choro mais. Pra onde você foi?, eu pergunto. No começo não era assim, eu ainda conseguia te sentir aqui. Comigo.
Queria tanto poder me desculpar e fazer tudo de novo, diferente, melhor... mas acho que essa dor nunca vai passar - ela só muda ao longo dos anos. E a ferida chamada saudade hoje abriu mais uma vez.

A cada dia se torna mais difícil lembrar de como você era. Seu jeito, sua voz, seu cheiro, sua risada, suas manias... aos poucos ficam enevoadas nas minhas lembranças, e isso dói. Seu perfume já passou da validade há muito tempo, mas continua intocado na prateleira. Não usei uma gota, mas às vezes abro um pouco a tampa só pra me lembrar como era a sensação de ter você por perto, e imediatamente, inconscientemente, a fecho, pra que sua essência não se desperdice. Suas roupas, suas joias, eu uso. Quero que, em algum lugar, você veja que tenho orgulho de quem você foi.
Às vezes me pego de relance em algum espelho por aí e enxergo você. Eu estava errada, mãe, quero ser como você. Me perdoe por não ter sido uma boa filha, tento reparar isso todos os dias com as pessoas que ainda tenho ao meu lado, e esse se tornou o maior desafio da minha vida.


Apesar de tudo isso, eu venho lidando relativamente bem com a situação: a ausência sempre me assustou menos que a presença. Acho que é por isso que me dói mais não ter feito o certo antes do que não ter você aqui agora.
Acho que é por isso que não sei lidar direito com quem ainda tenho.
Ainda sou só uma menina tentando lidar com o amor - e com a falta dele.

InefávelOnde histórias criam vida. Descubra agora