Capítulo 1, parte 1.

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Coincidências.
A vida era feita de uma porrada delas.
Bom, pelo menos a minha era.
Tudo que rondava a minha vida desde que eu me lembre foi uma coincidência. A forma como eu vim parar nessa bosta de país foi uma coincidência. A forma como eu conheci o meu namor... Ex, ex namorado, foi uma coincidência. A forma que eu conheci as melhores amigas que já tive foi uma coincidência.
Eu sempre tive o sonho de morar na Inglaterra, desde criança. Eu usava capinhas de celulares com a bandeira do Reino Unido, faltava na escola pra assistir os dois casamentos reais, do William e do Harry. Eu gostava tanto desse país que falava sobre os príncipes sem usar as formalidades, eles eram só William e Harry, sem príncipe na frente.
É claro que isso tem muito a ver com os livros que eu sempre li. Desde que eu fui alfabetizada, andava pra cima e pra baixo com um livro pendurado em mim. Todo mundo ficava surpreso em como uma criança de nove, dez anos, lia livros enormes sobre romances que -teoricamente- não era para eu entender ou ter curiosidade sobre.
Tem muito a ver com Austen e Bronte. Muito a ver com a idealização da menina boazinha que consegue resolver o bad boy ferrado da vida.
Nesse exato momento eu estou deitada na cama da minha amiga, Sarah. Ela mora no andar de cima do prédio que eu moro e por isso, eu corri para cá depois de entrar no meu apartamento numa tentativa de salvar o bolo de aniversário que eu estava fazendo para o Fernando. Ela sempre deixa uma chave reserva embaixo da caixinha de plantas que ela jura-por-tudo-que-é-mais-sagrado que dá um ar de vida na entrada do apartamento, apesar da planta ser de plástico. Isso é bom, afinal, porque ninguém nunca suspeita que pode ter uma chave embaixo de um vaso de planta de mentira. As meninas e eu ficamos rindo por mais de quinze minutos quando ela entrou correndo pela casa gritando "vocês não vão acreditar no que eu achei!" e apontou o vaso com um cacto de plástico, sorrindo de orelha a orelha e com os olhos brilhando. "Vou começar a dar vida pra esse lugar", ela acrescentou. A May, por ser como é, disse com a mão na barriga depois de cair no chão de tanto rir: "então, a planta de mentira vai dar vida ao apartamento, é?" E nós, por sermos como somos, rimos da risada dela e do fato da Sarah olhar frustrada pra nós sem entender qual é a graça.
Minhas amigas.
Sento na cama, suspiro e pego o celular.
"Oi, eu vim pro seu ap, espero que não tenha problema." Mando primeiro pra Sah.
"Gente, vocês não vão acreditar... Eu peguei o Fernando me traindo no nosso quarto." Eu mando em seguida no nosso grupo do whatsapp.
Não tenho tempo nem de bloquear a tela e começo a ser bombardeada com mensagens de "COMO ASSIM?" da Jé; "amiga, não acredito :(" da Ray; "NO QUARTO DE VOCES?" Da Kat; "eu nem me surpreendo mais. Homem não presta." Da Na; "sério. Eu vou matar esse idiota" Da Sah e um áudio com mais de trinta segundos da May arquitetando um plano de queimar todas as roupas dele e todos os dvd's de videogame que ele tem.
Eu leio tudo, mas não respondo, jogo o celular na cama e me deito de novo.
Um turbilhão de sentimentos me invade nesse momento: raiva, tristeza, nojo, mágoa. Minha vontade é de fazer as malas e voltar para o Brasil, mas não vou fazer isso. Primeiro que eu não vim para a Inglaterra por causa dele, então obviamente não vou embora por esse motivo; segundo que eu tenho um empreg...
Dou um salto da cama e grito "PUTA QUE PARIU!" Eu fiquei tão transtornada com o que aconteceu que esqueci completamente de voltar para a Editora. "Que merda, merda, merda!" eu continuo andando pelo quarto dando tapas na minha testa. Pego meu telefone para mandar uma mensagem avisando que tive um imprevisto; não quero nem tenho cabeça para trabalhar hoje, mas eu sou profissional, não posso faltar no trabalho simplesmente porque minha vida pessoal resolveu virar de ponta cabeça.
Na hora que desbloqueio meu celular, vejo que Safira – minha nova colega de trabalho – me mandou uma mensagem que dizia algo sobre o ar condicionado ter explodido 'pegou fogo e tudo' a mensagem dizia, e que por isso todos foram dispensados. Graças a Deus.
Me jogo novamente na cama e suspiro, mais uma vez. Eu já suspirei tanto na vida? Levo a mão a minha cabeça e massageio minha testa franzida que dói enquanto sinto uma enxaqueca se formando.
Por algum motivo que não entendo, minha mente me leva para aquele aeroporto, ainda no Brasil, na véspera da minha viagem para cá.

5 de fevereiro de 2023.
"Mãe pelo amor DE DEUS! Ele já disse quinhentas vezes que nós precisamos falar com o gerente da operadora!" Eu grito para minha mãe que está com o dedo quase na cara de um atendente telefônico, no meio do aeroporto de Guarulhos em São Paulo.
"Ana Carolina, no site estava escrito que era só vir aqui e retirar o chip. Eu não vou falar com gerente nenhum, é um absurdo ter que pagar uma taxa para RETIRAR o chip. Isso é roubo!" Ela berra me apontando o celular com letras pequenas do site da operadora que comprova a sua frustração.
"Minha senhora, deve estar acontecendo uma confusão. Em outra parte da página é informado o valor da taxa de retirada." O atendente diz, olhando pra mim e pra ela, tremendo.
"Vocês que organizaram isso igual a bunda de vocês! Eu não vou pagar taxa nenhuma, eu quero meu chip!" Ela berra de volta.
"Eu desisto!" Eu grito também, fazendo todas as pessoas que estão passando olharem pra mim. Ótimo. Como se eu precisasse de toda essa atenção. "Vou comprar um café", informo e viro as costas procurando o Starbucks que tanto amo.
Pego meu celular e entro no meu grupo favorito. "De verdade, a minha mãe vai me deixar louca! Eu vou embora daqui dois dias e ela simplesmen..." Eu gravava um áudio no grupo das m-girlz quando alguma coisa me acerta em cheio e me derruba de cara no chão.
"MEU DEUS DO CÉU, GUSTAVO! Olha o que você fez!" Eu escuto alguém gritando e passos que correm na minha direção.
De verdade, hoje é o dia. Eu começo a me levantar quando sinto mãos nos meus braços e alguém ofegante que diz "me desculpa, meu Deus. Você está bem? Cara, foi meu irmãozinho pequeno. Ele gosta de subir em cima da mala e pede pra gente jogar porque ele gosta da adrenalina e como eu vou embora amanhã pra outro país eu não me importei de fazer todas as suas vontades e nem medi a força que..." Estou olhando para um menino moreno, de olhos tão verdes que parecem esmeraldas, com piercing na sobrancelha, um alargador e que está vestido todo de preto, com uma expressão confusa. Acho que ele percebe que estou encarando e diz "muita informação?" sorrindo de leve.
Eu pisco algumas vezes e percebo que minha cabeça está doendo. "Ai." Eu digo e ele faz uma careta.
"Você se machucou? Nossa, me desculpa, sério." Ele diz levando a mão na cabeça e esfregando o cabelo. "Gustavo, vem pedir desculpas." Ele completa, olhando para o lado e estendendo o braço pra um menininho que está escondido atrás daquelas cadeiras pequenas de aeroporto. "Vem. Pedir. Desculpas." O menino repete com a voz firme.
Observo a criança sair de trás da cadeira e agarrar a perna do menino que estava falando comigo. Ele chupa o dedão da mão pequena, então imagino que deva ter algo em torno de três ou quatro anos. Ele é moreno, os olhos são ainda mais verdes que o do irmão e o cabelo dele é tijelinha. É a coisa mais fofa que eu já vi na vida.
"Dicupa", ele diz e abaixa a cabeça.
Eu não resisto e abro um sorriso.
"Tudo bem, não foi nada! Não precisa se preocupar!" Eu respondo e abaixo pra ficar na altura dele que abre um sorriso.
"Ok." Ele diz e se afasta da perna do irmão. "De novo?" Pergunta, olhando pra cima.
O menino que estava falando comigo solta uma risada e diz algo sobre já-bagunçamos-mais-do-que-devíamos-por-hoje, o que faz a criança fechar a cara e fazer beicinho. Ele corre para outros dois adultos -os pais dele, imagino- e eu fico lá só com aquele menino.
"Desculpa, de novo." Ele diz e vira as costas, indo na direção do irmão.
Eu respiro fundo, realmente machuquei minha cabeça mas eu não queria falar isso para que ele não se sentisse culpado. Preciso arrumar um gelo ou algo do tipo.
"Aliás", eu escuto alguém gritar e percebo que é o menino que estava aqui agora, "o meu nome é Fernando!" Ele para e sorri para mim.
"O meu é Carol!" Eu respondo levando as mãos até a boca pra que o som saia mais alto.
"Prazer, Carol. Espero que eu te encontre de novo por aí. Dessa vez sem te machucar." Ele diz rindo e eu dou risada também.

Mal eu sabia que dali dois meses eu estaria em outro país, morando com o tal menino moreno do olho verde cheio de piercing e que iria pegar ele me traindo com a vizinha que eu jurava que era minha amiga.

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