Aquele Homem

20 8 0
                                    


O que senti naquele momento foi inexplicável. Por um segundo, pensei que ele iria me matar como tentou fazer, sem sucesso, quando eu tinha apenas 10 anos. Na época, tive sorte em sobreviver, na realidade tive sorte de encontrar Seu Zé, o agiota do bairro.

20 anos antes

Lembro em flash do que aconteceu. 

Corri desesperada pela rua sentindo o sangue da minha mãe escorrendo em meu rosto, inclusive lembro do gosto que respingou em minha boca. A sensação do líquido quente e viscoso na pele ainda me atormenta, lavo o meu rosto várias vezes ao dia. 

Entrei no bar do seu Zé e parei na porta. O ar faltava, senti um forte enjoo e tontura. Não sei como consegui correr. 

Flash! 

Seu Zé me olhou friamente. Manteve a calma e se Aproximou. 

Flash! 

Senti a mão dele me puxar. 

Flash! 

Ele me colocou atrás do balcão. 

Flash! 

Seu Zé abriu uma gaveta e pegou uma arma. Olhou para mim e fez sinal de silêncio com o dedo indicador. 

Flash! 

Aquele homem entrou aos gritos no bar, não houve conversa. Seu Zé atirou. O barulho do tiro ecoou na minha cabeça. 

Flash! 

A mulher do Seu Zé, Dona Geralda desceu as escadas do sobrado em que o casal morava e que ficava em cima do bar. Ela me pegou no colo e observou Aquele homem no chão e seu Zé apontando a arma. Não houve questionamentos da parte dela, que me levou para o andar superior.

Flash! 

A sirene do viatura da polícia se aproximou lentamente. Ouvi outra sirena, agora da ambulância. Pessoas entraram na casa e se aproximaram de mim. Não sentia meu corpo. Morri em algum momento naquele dia.

Escuridão!

Seu Zé era figura lendária do bairro. Dono de bar e famoso agiota da região. Respeitado e temido. Amigo de todo tipo de gente e inimigo também. 

Enquanto um grupo de policiais encontrava o corpo da minha mãe desconfigurado no chão da sala, após ser alvejado por vários tiros entre eles um na cabeça. Seu Zé, explicava o ocorrido a outros policiais que estavam no bar, alegando "Legítima defesa" e proteção a uma menor indefesa. 

Não tinha outra justificativa, aquele homem tinha uma arma carregada em mãos, apontara para a própria filha, então, Seu Zé atirou a sangue frio. O único arrependimento foi não ter o matado. Como eu disse, Seu Zé era frio, vivido, homem inteligente e entendia de leis melhor que muitos advogados.

Meu corpo frágil e cheio de hematomas não parava de tremer. Urinei de tanto pavor e estava desorientada. Uma policial se aproximou de mim e me encolhi no colo da Dona Geralda, que tentava me acalmar. Horas depois, ela me deu um banho quente e colocou roupas limpas. Lembro perfeitamente que aquele foi o primeiro banho quente que tomei em semanas.

*

A tragédia anunciada da casa 412, localizada em uma rua sem saída, perto do bar do Seu Zé era esperada por todos. Aquele homem era violento diariamente com a esposa e a filha, todos sabiam e não faziam nada. Em briga de marido e mulher não se mete a colher. Inclusive, o pastor da igreja que minha mãe frequentava a orientou a lutar por seu casamento. 

Aquele homem foi levado para o hospital, ficou meses internato e saiu direto para a prisão. A condenação veio três anos depois, num julgamento televisionado e sensacionalista. A história era quente, os detalhes do assassinato foram narrados em todos os jornais e a menina que sobreviveu do ataque do pai e saiu correndo pela rua coberta de sangue da própria mãe era o enredo perfeito para os programas policiais. O clamor popular criou uma onda de protestos pedindo justiça. A mulher submissa do bairro pobre de São Paulo, que foi esquecida enquanto viva, virou bandeira de vários movimentos, mas isso não mudou a realidade de outras mulheres como ela que continuaram esquecidas.

O Voo da MonarcaOnde histórias criam vida. Descubra agora