A inércia

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Acordar é muitíssimo irritante. Rotinas são irritantes. Sabe, tem tanta coisa no mundo que não me agrada, que às vezes eu me surpreendo por conseguir aturá-las. Tipo meus pais. Acordei tristonha depois de ter um sonho incrível com uma lula gigante que piscava no escuro do oceano, só que eu não lembrava o nome da Lula. Acho que era Cláudia ou Samanta. Levantei rapidamente da cama, e minhas costas estralaram.

- Mas que merda! Parece até que tenho 73 anos, ficar estralando os ossos!

- Isso é que dá não comer. Você é puro osso, não me admira que o atrito entre eles seja frequênte e...

- Eu conheço muito bem anatomia, não precisa ficar repetindo seus conceitos pra mim, Amanda.

Amanda era minha irmã de 23 anos que vivia repetindo pra mim as coisas que lia nos seus livros da escola. Eu já havia me acostumado com isso, portanto saí do quarto e desci as escadas até a mesa. Havia uma expressão de censura nos olhos do meu pai, talvez até um toque de desafio. Eu o olhei com uma cara de quem diz: "Que foi? Nunca me viu antes?"

Ele olhou para minha mãe, que estava ao telefone falando com uma tal de Isadora, em busca de apoio moral. Mas ela nem percebeu seus olhares. Meus pais são totalmente fora do comum. Às vezes me pergunto como conseguiram se apaixonar um pelo outro, porque tirando aquela máscara de beleza incomparável da minha mãe, havia uma mulher bruta e até malvada. E tirando aquela barba meio mal feita de meu pai e seu rosto esquelético no estilo alemão, ele era quase que infantil e adorava provocar.

Tendo fracassado na busca pelo apoio de minha mãe, ele me olhou e finalmente disse:

- Carol, são quase duas horas da tarde. Acha que só porque está de férias pode deixar de almoçar no horário? Lembre que amanhã você já tem aula - ele falou, enquanto observava, irritado, o fato de que eu fingia não dar-lhe atenção enquanto me servia de uma concha de feijão.

- E ainda por cima colocar esse pingo de comida! - ele disse, alterando levemente a voz.

- Tadeu, deixa ela. Quando o dr. Paulo disser que teremos de interná-la por anemia extrema, então ela passará a te ouvir como uma filha deveria fazê-lo.

Minha mãe usava um batom vermelho e uma camisa branca com detalhes, manga longa. Uma calça preta skin e um salto creme e altíssimo. Como sempre, ela parecia impecável, devido à sua vaidade. Brincos e colares, anéis enormes e pulseiras, todos no mínimo banhados a ouro. Mas isso era normal. Era apenas mais um dia. Apenas mais um dia na minha vida.

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