I
A garota de shorts cinzentos abriu a geladeira e permitiu que a luz amarelada penetrasse em seu rosto e revelasse os olhos arregalados que estudavam com pressa o que roubar.A íris cor de chocolate corria de um lado para o outro,deslizando pelas grades freneticamente como os olhos de um viciado,então o pote brilhou no freezer e seus olhos corresponderam ao brilho.Um sorriso diabólico desenhou-se em seu rosto,suas mãos foram como garras agarrando o pote branco.
Ao tirar a tampa veio o alívio do sucesso e a alegria do lanche noturno,passou os dedos pelo sorvete e os lambeu prestígio - constatou com o sabor doce dançando em sua boca.
Com a tampa sobre a mesa,dedos e lábios sujos e grudentos uma voz rouca adentrou a cozinha como um guarda noturno fazendo a ronda rotineira.
-Ouço ratos na cozinha.
A garota parou com os olhos presos na sombra que crescia ao longe,o ar gelado do freezer começava a rosear suas bochechas e a luz amarela criava a tensão de um interrogatório que iria se seguir.
-Olá.-disse o homem na extremidade da mesa de madeira.-Vejo que está se divertindo.
-Uhum.-ela disse fechando a geladeira,ainda com o pote nos braços.-Boa noite,papai.
-Boa noite.
O homem esticou a bengala até a parede e desceu o interruptor em um golpe suave,as luzes do teto se acenderam e a garota continuava a enfiar os dedos no pote de sorvete.Os olhos arregalados fitavam o homem sem cessar enquanto ela enxchia as bochechas de prestígio.
Sentou-se à mesa e analisou os dedos grudentos da garota que começavam a ficar rubros assim como suas bochechas,descansou a bengala sobre o colo e voltou a quebrar o som de lambidas que vinha do lado oposto.
-Você não sente frio?
-Bom...-ela disse se sentando.-...o que é a vida sem sacrifício,não é mesmo?
-Nisso devo concordar.
-O...o quê?
-Tanto é que...-ele dizia enquanto ela permanecia com a guarda alta,estranhando o comportamento do pai.Ela esperava uma bronca não um apoio a furtos futuros.-...trouxe algo para você para...bom...honrar seus atos de sacrifício em prol do bem maior.
Ela tirou os dedos da boca e virou o pote na direção do homem de cabelos grisalhos.
-Você quer?-perguntou por educação e quando ele negou com um gesto,ela percebeu que ele estava usando luvas de couro.Um olhar de descontentamento surgiu em sua face e ele perdeu o modo cortês de falar.
-Droga,Lucy!-exclamou em um suspiro,ela tirou mais um pouco de sorvete com os dedos.-Estava querendo transformar isso em um momento solene.
A garota amarrou os cabelos em um coque rapidamente e pôs um pé sobre a cadeira,o joelho na frente dos seios.Uma pontada de interesse lhe afligia quando fitava a face cansada do pai e dando uma última chupada nos dedos perguntou com a voz sonolenta mas séria.
-O que é?
O homem levantou o rosto e a encarou com seus olhos cinzentos,a atmosfera descontraída agora era uma lembrança distante.
-Era da minha mãe e antes,da mãe dela e,se você aceitasse queria que fosse seu.
-Posso ver?-ela perguntou com a curiosidade brilhando nos olhos.
A ideia de uma relíquia passada por gerações...
-Sim.-ele respondeu enfiando a mão nos bolsos.-Claro,estava por aqui...deixe-me ver.Encontrei!
O homem de cabelos grisalhos puxou do forro do paletó um cordão negro com um pequeno círculo prateado,segurou com os dedos e deixou o círculo balançar no ar atiçando a garota do outro lado.Lucy esticou os dedos grudentos e vermelhos e então o cordão foi lançado pela mesa,ela o agarrou quando chegou as suas mãos e o levantou no ar como o pai fizera.
Em uma primeira análise,a conclusão gritante veio à tona:era vagabundo,não valia mais que a coberta de um mendigo.
Com o objeto suspenso,as pontinhas de algodão gasto saltavam do cordão negro criando sombras como a de uma centopeia pega pela cauda,a prata do círculo começara a enferrujar nas bordas prateadas mas o símbolo era de uma nitidez que ultrapassava o óbvio chegando ao campo da intuição. Um pentagrama Lucy pensou ao vê-lo girando lentamente.
-É de valor afetivo.-informou o homem ao ver o rosto confuso da filha que ao ouvir que era algo antigo imaginou que fosse de valor monetário,talvez estratosférico,mas aquilo não pagava nem o sorvete à sua frente.
Embora não respondesse as expectativas o objeto enchia seus olhos,a atraía,a induzia a usá-lo.E foi o que fez,envolveu-o no pulso e deixou o pentagrama descansando na mesa quando abaixou o braço para pegar o pote novamente.
-Eu adorei.-ela disse finalmente com uma sinceridade incomum ondulando em sua voz.
-Cuide dele direito.-o homem de cabelos grisalhos disse se levantando, com um sorriso irônico no rosto.-Sabemos que é de couro e prata mas não gostaria de vê-lo jogado pelos cantos.
Lucy correspondeu ao sorriso do pai e enfiou os dedos no prestígio mais uma vez e com a boca cheia balbuciou algumas palavras incompreensíveis,mas os bons ouvidos do homem filtraram algumas.Eram elas:
-Ok,pai.

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A Sombra No Seu Rosto
De TodoDurante a madrugada Lucy recebe de seu pai um objeto,que segundo ele atravessou a família por gerações.A partir desta noite eventos estranhos começam a acontecer na vida da garota.Atormentada por alucinações e pesadelos,uma fome insaciável começa a...