IEnquanto Willian rumava à águas agitadas com a roupa do corpo e uma bengala na mão,sua filha estava à caminho da escola se arrependo de não ter encarado a mãe e comido o café da manhã.Agora a fome estava comendo suas entranhas e agindo como um peso em seu estômago o afundando a cada mera lembrança de comida.
Fora Dylan era ela que morava mais longe da escola,da cidade,de tudo.Por muito tempo os pinheiros na borda da floresta e na beirada da estrada a acompanhavam,todos os dias,com os fones no ouvido e os longos cabelos castanhos descendo suas costas como ondas de ressaca.Dylan chegava mais rápido,ele tinha uma bicicleta e ela apenas duas pernas,mas existia um lado muito positivo em chegar atrasada que era: curtir o caminho e não ter esperar.
Mas da mesma forma existia o negativo,ouvir os professores reclamando da sua falta de responsabilidade.Era por esse simples motivo que ela não chegava atrasada mais,eles enchiam-lhe os ouvidos e ela se lembrava mais do interrogatório do que da matéria que estudava.Mas o sono da noite anterior pesou uma tonelada nos travesseiros se convertendo em correntes que a seguraram e não a deixaram acordar.
Eles vão comer meu fígado.
Quando saiu da estrada que era meio que uma alameda,ela finalmente chegou na cidade(meia hora depois)e tudo estava deserto,a não ser por alguns grupinhos de adultos e mais velhos conversando sobre alguma coisa nos bares e lanchonetes.Ela não sabia o que era,nem estava pensando nisso,tudo que via era o colegio se erguendo no fim da rua como uma sobrevivente de uma guerra nuclear.A entrada estava vazia,os degraus que levavam a entrada guardavam apenas poeira e folhas de caderno com bobagens adolescentes.
Mas nada disso importava.Porque ela sabia o significado das entrelinhas e conseguia imaginar o que a esperava antes de entrar na sala de aula.
IIA voz áspera do zelador e as perguntas com um breve olhar de decepção do diretor Hopkins ainda flutuavam em sua mente como restos de um navio naufragado.Estavam martelando sua cabeça,filtrando por completo as palavras do professor em sala de aula,transformando-as em uma espécie de lamento ou oração para os ouvidos de Lucy.
As palavras saiam de seus lábios e apenas sílabas atingiam os ouvidos da garota,sílabas estas que continham alguma relação com Física.Só de pensar nas aulas de Física um arrepio percorria sua espinha e revirava seu estômago,em parelelo um forte sono e desinteresse exalava de seu rosto que estava entre os braços sobre a mesa.
As meias palavras ressoavam nas paredes de tijolos a atingindo de todos os lados,uma confusão começava a se formar ao redor dela e se distanciar dos outros alunos.Eles pareciam ter total domínio sobre o conteúdo,olhos fixos no professor e nos rabiscos de pincel na lousa.Um segundo semestre difícil se apresentava a ela e a garota não sabia como reverter isso,pois da mesma forma que Matemática é o pesadelo de alguns Física era o dela,seu grande inimigo do ensino médio,derrotá-lo não seria simples principalmente se fosse dormindo com a cabeça entre os braços.
Mas ela não estava dormindo,ao contrário do que a maioria pensa dormir na escola é difícil.A sonolência vem,o torpor se alastra como um rastro de pólvora pelo corpo mas não acende,e a única coisa que podemos fazer e fechar os olhos e fingir estar dormindo,aproveitar a sensação de dormência e paz com o cérebro desperto.
Lucy levantou os olhos sobre os braços e fitou o professor gesticulando com os mesmos sussurros de antes.O homem se virou contra a lousa e então ouve silêncio de todos,menos de seu cérebro que trabalha no limiar entre sonho e realidade.A garota ajeitou-se na cadeira,ouve um ranger metálico constragedor quando alguns olharam para ela,pegou uma caneta preta e o outro braço ficou suspenso ao lado de seu corpo como uma manga vazia.
Os rabiscos na lousa lembravam vagamente palavras e números e ela as copiava como os outros estavam fazendo.Sua concentração estava aumentando gradativamente naquele silêncio enlouquecedor,permitindo que ouvisse claramente as pontas das canetas tinteiro riscando o papel e ainda distingui-las de cada aluno,se o impossível permitisse poderia até ouvir os pensamentos das pessoas dentro da sala de aula,felizmente ele não permitia.
O professor havia terminado e estava se sentando sobre a mesa quando cruzou as mãos na frente da barriga para esperá-los terminar e,nesse momento ela sentiu os primeiros dedos gelados envolverem seu pulso suspenso.
Um por um os dedos frios descansaram sobre sua pele, despertando um medo mudo que não a permitia gritar,nem dizer nada apenas assisti-la sair do solo para agarrar seu braço.Lucy se debatia em solavancos gritantes mas o professor apenas balançava sua perna e os alunos copiavam como máquinas humanas.A mão a puxou para baixo e a garota fez o movimento oposto a puxando para cima,seu pulso foi libertado com marcas de dedos cravadas em sua pele.
A mão despencou como um pedaço de carne e começou a debater-se em movimentos desnexos e torturados.Aquilo era terrível,ela podia ver os dedos daquela coisa se mexendo lentamente até cessar,estava morrendo.Os olhos de Lucy viajam,freneticamente,da mão morta para as marcas de dedos em seu braço.O medo começava a tomar corpo e se tranformar em desespero,ela estava prestes a gritar mas sua voz estava tão morta quanto a mão diante de si.
-Estamos com fome,garota.
Sussurrou uma voz,uma voz fraca e rouca em seus ouvidos,era como se um moribundo estivesse com os lábios em seu pescoço proferindo lentamente cada palavra que ao contrário das do professor eram nítidas e objetivas,quase como dela própria.
O medo,a sensação crescente e inexorável da angústia nauseante de ser surpreendida por algo que já viu,farrapos negros pairavam em suas lembranças ao ouvir aquelas palavras e entre eles um rosto oculto indecifrável.Lucy tentou ignorar mas a voz se aproximou,estava sobre seus ombros quando alimentou sua paranóia dizendo:
-Não está ouvindo?
As palavras caíram devagar sobre sua pele que agora estava tão gelada quanto a de um cadáver.A voz recuou e fios lisos e oleosos acariciaram seus ombros,um nó se fez em sua garganta e ela engoliu em seco ao sentir aquilo deslizar por sua pele,fechou as mãos até os nós dos dedos ficarem brancos e enquanto a voz desaparecia em ecos ela a atacou com o cotovelo sem olhar para trás.O silêncio se quebrou assim como o nariz de Dylan que sentava atrás dela.
-Minha nossa!
-O que foi isso?
-De novo?
Os alunos diziam,rindo e tampando a boca com as mãos em uma expressão de espanto mesclada com uma vontade insaciável de rir.Quando ia se virar para trás ela os viu,todos aqueles olhares curiosos que julgavam e zombavam,todos procurando seu rosto.Ela corou instantaneamente e girou na cadeira para fugir daqueles olhares,foi quando ela viu e uma onda de culpa invadiu sua face.
Um garoto estranho de cabelos ondulados segurava o sangue quente que vazava por entre os dedos.Foi uma cotovelada e tanto.
Ele tentou sorrir para ela mas tudo que conseguiu foi espalhar o sangue para as bochechas,do nada ele começava a se assemelhar a um palhaço.E ela não gostava de palhaços.Desviou os olhos da garota e viu o professor sobre a mesa,tinha tirado o óculos para analisa-los.Ele tinha olhinhos redondos e marejados que queimavam,pronto para bombardeá-los com broncas e mais broncas,quem sabe até uma suspensão.
Repentinamente a voz de Dylan se sobrepôs entre as demais,estava completamente calma.
-Imagino que na terceira é expulsão,professor.
Alguns riram e outros fizeram silêncio ao ver as rugas no rosto do professor e Lucy ficou pensando Como assim terceira?
-Você.-ele indicou para Lucy que sabia que era com ela.-O diretor vai ficar feliz em te ver de novo,então vamos andando.
A voz do professor estava inabalável mas quando fitou os olhos escuros e descontraídos de Dylan seu tom mudou,ficou mais calmo,lembrando o tom de Dylan segundos antes.
-Você,garoto Salazar.-vários risinhos ecoaram na sala.-Irei permitir que acompanhe sua dominadora até o ambulatório.
Os dois socaram os livros na mochila com pressa e quando Lucy passou por ele,Dylan jogou a mochila sobre os ombros e se encaminhou para a saída também.Caminharam por entre os burburinhos e alunos que desviavam o olhar quando eles passavam,outros que os fitavam com olhos inquisitores,mas nenhuma era pior que a do professor que se divertia com aquilo.
-Mais uma coisa.-disse o professor parando Dylan.Lucy já estava na porta.-Leve isso como de um amigo,garoto Salazar.
Dylan disse apenas Uhm e assentiu com a cabeça,o olhar cansado.
-Quando chegar lá,não diga que gosta de apanhar de garotas.-risadas eclodiram na sala mais uma vez,mas Dylan não se intimidou pelo contrário pôs a mão suja de sangue no ombro do professor e disse em tom solene quase como se o desprezasse
-Vai pro inferno.
O professor iria para o inferno mas naquele dia,além de ir ao ambulatório,ele faria uma visita ao diretor e ganharia férias adiantadas que sujariam seu currículo para sempre.
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A Sombra No Seu Rosto
RandomDurante a madrugada Lucy recebe de seu pai um objeto,que segundo ele atravessou a família por gerações.A partir desta noite eventos estranhos começam a acontecer na vida da garota.Atormentada por alucinações e pesadelos,uma fome insaciável começa a...