00.1

46 4 18
                                    

00.1 — Barreira.



Anos passaram e observei a aberração de olhos bi-color crescer. Ela era uma criança raquitica, muito menor que as crianças a sua volta, apesar de ser bem alimentada. Era muito amada por sua mãe, apesar de ser órfã de pai, e ela estava sempre disponível para escutar suas baboseiras infantis.

A humana trabalhava muito, por vezes deixava sua prole sozinha em casa com sua Newt, apesar de ser contra a lei, dos humanos e dos Newts. Onde já se viu, um Newt sair do lado do humano?! Abominável! Mas a Newt em questão não se importava com isso, na verdade, parecia apreciar o tempo que gastava ao lado da criança indigna.

— Adora! — Chamou a Aberração, enquanto ela  corria nua pela casa.

Quase quatro anos, essa era a idade da coisa e ela ainda não sabia ir ao banheiro. O que esperar de uma criança deficiente?! Saber limpar suas próprias fezes seria o mínimo. Imagina estar ligado a essa coisa toda uma vida e ela não conseguir aprender o básico de higiene?! Mas não se pode esperar muito de uma criança indigna como essa.

A peste passou correndo entre minhas pernas e eu tremi de ódio quando suas mãos minúsculas me tocaram, nunca na vida saberia explicar tamanha a repulsa que eu sinto por essa coisa, essa deficiente. Seu toque me lembra da madrugada horripilante onde eu fui forçado a me ligar a aberração, algo doloroso, invasivo, agoniante, urgente, não exatamente nessa ordem, mas igualmente grotesco e repulsivo.

Suspirei enquanto vi a Newt me olhar com um ar de repreensão.

"Por que você não pegou ela?!" Disparou em minha mente.

Como eu odiava invasão de familiares.

— Não sou a babá dela. A mãe devia de estar aqui.

Seu olhar se tornou voraz.

"Heleonora tem que trabalhar, caso contrário não vai conseguir pagar o aluguel e nem colocar comida na mesa! Temos que ajudar nossos mestres!" A fala tola da Newt me fez gargalhar e ela ficou confusa por um momento.

— O que tem de engraçado?! — Perguntou em voz alta.

— Newts mais baixos são muito engraçados. — Balancei a cabeça e mudei meu tom de voz — Nunca vou ser idiota e chamar um humano de meu "mestre"! Eu sou um nobre, deveria estar com alguém mais capaz, não com vocês indignos e, claramente, não com uma criança que não consegue nem usar o banheiro ou escutar simples comandos, essa aberração em forma de criança deveria logo se apressar e m...

— JÁ BASTA! — Gritou em voz alta, correndo para algum lugar que eu não fiz questão de ver. Não vi a Newt, nem a aberração deficiente que era ligada a mim por um tempo. Val-Kirie, esse deveria o nome da babá da indigna. Estava aliviado por não vê-las durante o resto do dia, a criança gostava me encarar e rir, essa atitude me enoja, me lembra do dia da conexão e seus olhos só me reforçam que ela é uma deficiente. Indigna. Impura. Aberração.

Sinto falta do tempo em que humanos viviam pouco, sem interferência externa ela pode chegar até os cem anos. Talvez mais, sua linha de vida é longa, a maior entre as nove vidas que tive. Soltei um grande suspiro.

Quantas vidas eu teria de levar para recuperar a honra que a aberração vai, claramente, me roubar?! A primeira criança me custou sete vidas, mas eu fui ingênuo. Permissivo demais. Coisa de primeira vida.

Senti algo apertar meu estômago e fui chamado a realidade.

O lado complicado de estar ligado a uma vida humana era esse, os humanos eram seres frágeis e cada alteração em seu humor ou saúde eu conseguia sentir. Algo estava errado e eu sabia. Alguém não estava fazendo o seu trabalho direito em manter a peste sobre controle e longe de problemas. Não espere nada de Newts medíocres.

Os Newts e o Sopro de VidaOnde histórias criam vida. Descubra agora