Q U A T R O

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Eu apalpei o despertador que apitava sobre minha cômoda, deslizei os dedos e pressionei o botão, depois rolei para o outro lado da cama derrubando o despertador no chão. Eu não me dei o luxo de olhar se havia quebrado ou não, porque raios alguém coloca um despertador para tocar nas férias? Alguém muito amargurado. Me enrolei no lençol e fiquei no silencio do quarto escuro, apenas uma fresta da janela que invadia meu quarto iluminando um retângulo no meu rosto.

Nossa amizade durara cinco anos, cinco verões consecutivos. Carlos era o único vizinho qual passava o verão na casa modesta dos seus pais, era do sul do país, seus pais haviam divorciado, então passava as férias e os feriados junto com seu pai que morava a poucos segundos do chalé. Ele sempre chegava na metade de dezembro, uns quinze dias após o inicio das férias. Durante todo o ano trocávamos correspondências, era o único amigo que não me abandonava após o fim dos três meses porque sempre veria ele no outro ano, mas aquele seria nosso último verão, nós estávamos crescendo, ele iria morar permanentemente na capital no inicio do outono, talvez estudasse e talvez conseguisse se formar em direito, então aquele seria seu último verão.

Naquela manhã os pássaros se banhavam no chafariz, os sons que faziam eram como uma melodia doce, deixei a casa e parti correndo quando vi o carro polido do pai de Carlos cintilando, cruzando a estrada. Cheguei no jardim com varias estatuas e algumas tombadas, o jardim de grama verde e o muro escondia a casa. Entrei. O senhor Manoel, o pai de Carlos, era quase como um de nossos amigos, tinha uma facilidade em contar histórias a noite quando dormia na sua casa e mesmo sendo um homem sério tinha um espirito de uma criança risonha.

Ele me viu e sorriu, a camiseta polo amarrotada, a gola fechada e um tom quase escuro. Tinha um sorriso branco que expressava cada palavra do que sentia, um sorriso baiano. Venho até mim e me abraçou dando tapinhas nas costas, depois chamou o filho que desceu as escadas da varanda e cruzou o gramado com o mesmo sorriso do pai. Um odor de tangerina fresca que vinha de todo o lugar rodeado por arvores de porte pequena, os galhos como mãos e as folhas verde escuro, brilhosas e que também tinham um cheiro próprio, as frutas eram lisas e bonitas e pendiam nos galhos. Minha mente relacionava logo aquele cheiro com: a) a casa de Carlos, e, b) o verão, a época que aquele cheiro ficava impregnando no ar.

Carlos riu e me abraçou, havia-se muito contato corporal como qualquer cidade não-metropolitana, era a cultura, os abraços eram tão necessários como o ar que respiramos, o calor humano e o calor térmico. Pareciam que naquele tempo as pessoas eram mais afetuosas.

— Como eu senti sua falta, recebi todas as suas correspondências.

— Eu também — olhei para ele um pouco desanimado e ele entendeu, respirei fundo e fiz nascer um sorriso — esse será o nosso melhor verão.

— Com certeza será — falou ele confiante.

— Não terá mais graça sem você.

— A minha vida não terá mais graça sem tudo isso aqui.

Eu ri e ele me levo até dentro de sua casa, os moveis de madeira bruta, o sol entrando pelos vidros largos e os porta-retratos de Manoel colocados na sala. Não deixei de perceber que havia apenas um quadro do filho, um único quadro antigo. A mesa era toda tomada por outras fotografias dos outros filhos e da sua nova família, sempre me falava que se sentia triste ao perceber que dividiria seu pai e que criaria uma nova família e seu amor seria divido, na época, quando éramos garotos; ele ficava entristecido e não gostava de visitar seu pai, tinha magoas por isso, remoía a dor de ter sido substituído como filho.

— Como vai seu pai? — perguntou Manoel.

— Vai bem, prometeu-nos dar uma pausa na escrita, sabe como é, dar um tempo para a família.

Manoel abaixa a cabeça pro chão e ajeita os óculos trazendo para perto dos olhos, depois some e me traz um copo d'água transparente de água cristalina e me oferece. Agradeço e bebo. Depois subo até seu quarto batendo o pé, estava vazio, ainda haviam caixas lacradas.

— E seus avós?

— Continuam apaixonados.

Ele ri.

— Ainda quero chegar a idade deles. E seu avô, como está?

— Melhorou felizmente. Mas no inverno teve crises tristes.

— Ele é tão corajoso.

É. Deitei na cama dele ao lado dele.

— Eu já visitei a faculdade, é um campus incrível. Sabe como é importante estar lá? Não só para orgulhar meu pai, mas porque na minha classe devo ser o único negro.

— Você é corajoso.

Ele virou-se debruço e riu.

— Vi a menina. — Menina? — Sim, a garota que está na sua casa.

Levantei a sobrancelha e me levantei talvez me sentisse incomodado.

— Amigos da minha família.

— Achei ela encantadora — pensou alto.

É. Depois eu me levantei e falei para ele que não queria ficar falando sobre ela, então fomos pedalando até a sorveteria no centro da cidade, o lugar mais frequentado por nós aonde conversávamos e nos refrescávamos.

Mais tarde estava de pé, ajudei meu pai a arrumar o carro, as mãos sujas de graça e a regata branca manchada. Meu pai estava com um pano nas costas, gotinhas de suor escoriam pela sua testa enquanto torcia a ferramenta.

Haviam momentos — raros — que eu e meu pai conversávamos, e as vezes era interessante, nossas conversas eram sempre sobre coisas que provavelmente os pais não conversariam com os filhos, porem eu gostava do seu humor negro aguçado e de suas piadas inteligentes que arrancavam sorrisos do meu rosto. As vezes me perguntava porque não éramos assim todos os dias? Éramos totalmente diferentes. Ele não aceitava minhas ideias, talvez me achasse que eu não teria o futuro que ele idealizava em sua mente. Me achava mimado, orgulhoso, egoísta e imaturo.

Eu tinha sua imagem construída como: um homem sério, gélido e as vezes hipócrita, mas nunca perdia o respeito. Apesar de tudo isso éramos grandes amigos.

As vezes ele se escandalizava comigo, gritava e discutia. As vezes eu achava errado seus atos. Nossos gênios eram fortes, uma explosão de teimosia.

— Agora dá a partida.

Impulsionei meu corpo e movi as rodinhas saindo de baixo do carro, o cabelo bagunçado e os pingos de óleo. Me levantei e bati minha calça tirando a poeira e entrei dentro do carro. A chave pendia na ignição, segui os concelhos do meu pai e consegui fazer o carro funcionar. Ele deu um grito animado vibrando e depois deu a volta pelo capô segurando a maçaneta e abrindo a porta, depois se jogou nos bancos de couro, não se importou em sujar os bancos de graxa, deu tapinhas nas minhas costas e falou:

— Quer dar uma volta?

Primeiro; fiquei assuado.

Depois; fiquei feliz.

Era uma oportunidade para provar a ele que eu conseguiria orgulha-lo. Eu queria que ele sentisse confiança em mim, e aquela confiança toda estava nas minhas mãos. Mãos que suavam no volante. Eu alarguei o sorriso tentando passar confiança a ele, o motor fazia o carro estremecer, o som ecoando no galpão de portas abertas para fora como se o carro ansiasse pela liberdade. Ele havia depositado confiança em mim, aquilo fez com que eu sentisse um peso enorme de responsabilidade em minhas costas. Ele confiava o carro dele nas minhas mãos.

Então, hesitante lentamente afundei meu pé no acelerador, seus olhos cresceram e ele disse:

— Antes de tudo. O freio de mão.

Dias LongosOnde histórias criam vida. Descubra agora