Pelada em frente ao espelho

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A arte de sonhar. Era isso que estava acontecendo comigo no momento em que eu escutava a voz da minha mãe vindo de bem longe, e aumentando, aumentando...

- Filha...filha?

- Hmm?

- Chegamos.

Eu abri os olhos e dava pra ver a animação do Tino, rodando e pulando, doidinho pra pular do carro. Ele adora vir no Chalé. Tem grama pra todo lado pra ele correr e brincar. Enquanto minha mãe estacionava o carro, vi em meio ao cinza dourado de final de tarde as luzes dos faróis iluminando aquilo que poderia ser o papai. Na verdade era ele, mas eu estava muito sonolenta pra distinguir. Ele tinha no rosto um sorriso tão grande, como em todas as vezes que nos via chegar.

Abri a porta do carro e o Tino já foi se jogando pra fora. Desci e fui em direção ao papai para abraça-lo. Eu não o via há um mês. Coloquei a cabeça sobre o peito dele enquanto o segurava com os braços de um jeito que dizia: "estava com saudades". Ele me afastou um pouco, olhou pra mim com um olhar brilhante e me encarou por uns dez segundos sem dizer uma palavra sequer.

- Você está linda querida!

- Obrigada pai. Mas se o senhor acha uma mulher com o cabelo ressecado porque não hidrata a três dias vestida com uma calça amarrotada e cara de morta uma pessoa linda, então ok.

- Ei! Ele me conheceu desse jeitinho! – Disse a mamãe cruzando os braços e rindo.

- Então, está ficando frio, vamos entrar?

- Sim pai, vou só chamar o Tino e já entro.

Ele abraçou a mamãe e seguiram em direção às escadas. Antes de chamar o Tino eu parei um tempinho pra olhar o sol se pondo. Fazia tempo que eu não fazia isso, estava quase esquecendo da sensação boa que isso traz. Sou uma amante do sol. Tenho saudades das nossas férias no Brasil, das praias, dos meus avós...tem dois anos que não tiramos férias, sabe como é ne? Tudo tem que ter grana nesse mundo. Enfim...

- Tino!

Ele veio correndo em minha direção, coloquei ele no colo e fomos pra casa. Quando entrei senti o cheiro da comida e me lembrei de que estava com fome. O prato de hoje é o preferido do papai, eu acho bem estranho mas até que é bem saboroso. Se chama Wurstsalat, é um prato típico da Alemanha e sim, tem salsicha. É basicamente uma "salada de salsicha". Salsicha fatiada com pepino, pimentão, rabanete e queijo, acompanhada de azeite, vinagre, e se quiser, pão e cerveja. Você deve estar tipo "eca", mas eu também falei isso na primeira vez.

- Filha, já está quase pronto.

- Tá bom mãe, vou tomar um banho, qualquer coisa me chama.

O bom é que a água é quentinha. E o banheiro é tão lindo que dá vontade de morar lá. Paredes de madeira, banheira, cheirinho de árvore molhada...

Tirei a roupa, e enquanto esperava a banheira encher me olhava pelada em frente ao espelho. Não serviu pra nada a não ser me lembrar de que sou uma magricela. Banheira cheia, comecei o meu ritual. Coque no cabelo, pé direito primeiro, pé esquerdo depois, agacha, cotovelos apoiados na borda e senta.

- Puta merda, isso é muito bom!

Lavei os cabelos, tomei um banho revigorante, e de alma renovada fui me trocar. Fiquei em dúvida entre o casaco rosa com listras brancas e o vermelho vinho. Coloquei o da peste bubônica, só uso ele em casa. Ele é bonito, convenhamos. Mas não pra andar nas ruas europeias sem ser notada. Comprei pela internet, achei o ratinho da estampa fofo, sério, não foi por maldade.

- Quem é o garotão lindão? Você é o garotão lindão! – Falei apertando a carinha do Tino.

Ele pulou na cama e colocou a barriga pra cima, folgado. Enquanto fazia carinho nele, minha mãe me chamou pra jantar. Levantei e fui pra sala seguida pelo Tino.

- Filha, já conversamos sobre esse casaco...

- Eu sei pai, mas é tão quentinho, e até que é bonito também.

- Não sai por aí com isso hein.

Ele fala isso sempre, já acostumei. Sentei à mesa e começamos a jantar enquanto meu pai contava sobre a viagem dele à Budapeste e as exposições de artes. Pra ser sincera minha cabeça não estava ali naquele momento. Às vezes eu vou parar em outra dimensão em que sou rica, ou gostosa, ou memórias da minha antiga vida lá na Alemanha, enfim, nada de muito importante.

- Então filha, como está o trabalho? E morar sozinha?

- O trabalho nunca muda, sempre a mesma coisa. E a vida de morar sozinha não está sendo fácil, esse lance de cozinhar, lavar, passar...falando em trabalho, mãe, tu pediu ao papai pra ligar?

- Sim, ligamos enquanto você estava lá fora. Ela não atende, parece não estar em casa. Ligaremos novamente amanhã.

- Estranho ela ter faltado...- Disse o papai com cara de desconfiado. – Amanhã vou dar uma passada na casa dela pra ver se está tudo bem.

- Tá bom pai. Vou para o quarto, estou cansada.

- Certo filhota, boa noite.

- Boa noite mãe.

- Boa noite querida.

- Boa noite pai.

Fui para o quarto com o Tino. Deitei e fiquei olhando para as divisórias de madeira do teto. Amanhã é a última sessão, estou ansiosa. Mas não quero focar tanto nisso. Coloquei os fones de ouvido, e fui dormir ao som de Never Gonna Be Alone, do Nickelback.


"You're never gonna be alone

From this moment on..."

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⏰ Last updated: Nov 27, 2019 ⏰

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