Capítulo IX *Parte I

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A primeira coisa que você aprende na rua, quando está sozinho, quando não tem nada nos bolsos, quando não tem nem um pedaço de pão pra levar a boca, quando você é um pirralho com a barriga cheia de lombrigas e com os braços tão finos quanto um osso de cachorro, rodeado por milhares de pessoas muito mais fortes que você, capazes de fazer qualquer coisa pra conseguir um lugar onde passar a noite, algum tipo de sexo sujo, uma carteira de cigarros ou uma seringa cheia de droga de segunda... é aprender a ser esperto. Tem que saber quando dar as costas, quando cuspir na cara, quando gritar, quando brigar e quando fugir. Tem que aprender a renunciar todas as coisas que te interessam, que desejas. E a primeira coisa que você renuncia é a confiança. A sua boa vontade. A sua simpatia. O bem que todo ser humano diz ter...

A segunda coisa que aprende na rua é que o homem, o ser humano... é um hipócrita e um cínico. Que os direitos humanos, as liberdades individuais e a igualdade não existem. Que são invenções do homem hipócrita que todo mundo tem dentro de si para aparentar ser bom, para beneficiar-se das pessoas que o rodeiam. Todo mundo é hipócrita, uns mais e outros menos. E essa é a única diferença entre um homem e outro. Seu grau de hipocrisia...

A terceira coisa que aprende na rua é que ser "bom" não te leva a lugar algum, enquanto que ser "mau" pode te fazer dar a volta ao mundo.

E essas três lições podem se reduzir a uma só regra. Simples e clara: Se for esperto o bastante para não cometer nenhuma estupidez, não a cometa.

Mas... desde a comodidade de uma cama com lençóis azuis, com o céu iluminado pelo sol, com a cabeça repousada sobre um travesseiro de plumas suaves, com o cheiro de um campo de jasmins na primeira hora da manhã, debaixo de um teto sem goteiras, pintado de um verde claro impecável, a uma temperatura quente e agradável... dali, as coisas parecem diferentes. E as lições mudam. Se tornam mais flexíveis e em consequência disso as pessoas de tornam mais brandas e fracas, se tranquilizam, baixam a guarda e qualquer estupidez faz seu mundo cai e te atacar na garganta.

As pessoas se tornam fracas e ingênuas ou, talvez, por tanta hipocrisia e superficialidade, acabam se tornando verdadeiros vilões.

Mas... é claro, desde a comodidade de uma cama de lençóis azuis as coisas parecem diferentes, principalmente, se ao seu lado descansa um menino puro, ingênuo, alheio a toda a hipocrisia do mundo. Um menino grande que brinca com fogos de artifícios, daqueles que se acendem e soltam faíscas emitindo uma luz cegadora, e não sabe que a qualquer momento, os fogos podem cair de suas mãos e queimar seu rosto.

Um menino grande que se mantêm puro e brilhante entre tanta escuridão.

Olhá-lo sorrir tranquilamente, com o rosto brilhante e os olhos fechados, os lábio curvados, sorrindo como se tivessem sonhando com pirulitos e doces, na casinha do João e Maria. Seu cabelo bagunçado e espalhado por todo o travesseiro. Seu corpo nu, normalmente bronzeado ali parecendo tão pálido, como se nunca tivesse saído a luz do sol, como se fosse feito de neve. Como se fosse um bonequinho de neve. Não... nem se quer a neve é tão perfeita. Sempre derretia.

Suas mãos tocavam meu corpo, apoiadas em meu peito, escutando as batidas de um órgão mutilado, que batia, vivo. E eu, observando-o dormir, seu peito subir e descer, tão tranquilo, sendo incapaz de piscar. Estou fascinado, mesmo que não quisesse admitir.

Por um momento, acredito no Deus que nunca fez nada por mim, que me abandonou a minha própria sorte em uma rua escura. Acredito em anjos, acredito que tenho um ao lado, com as asas arrancadas. Por um momento acredito no amor, aquele que sempre esteve longe de mim, lembrando-me como nessa mesma noite, o Boneco de Cristal havia me dito "Te quero, te amo, estou apaixonado por você. Quero ficar com você. Fique." E acredito que talvez, poderia fazer isso. Talvez poderia ficar para vê-lo dormir todas as noites ao meu lado, nu, entre os lençóis azuis.

Muñeco 2 ❌ L.S ❌ [✔]Onde histórias criam vida. Descubra agora