Capítulo I

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NORMAL

— Pois bem, aproxime-se — falou Batedor.

Eu não tinha outra escolha. Atravessei o Saguão com uma sensação maluca. Começava em meu umbigo e terminava em minha garganta. Eu tinha certeza que estava sendo sufocado por algo em meu organismo. Eu sabia que algumas existências cresciam dentro de pessoas, sobretudo de Humanos, para depois escapulirem de uma vez como se fossem feitos apenas de líquido. Devia doer demais. Imagina uma criatura extremamente sólida, com ossos, cabelos, dentes e tudo o que há de estranho saindo de dentro de você? Eu não estava nem um pouco disposto a sentir aquilo. No entanto, parecia que uma criaturinha estava viva dentro de mim, prestes a fugir também. E por qual lugar ela sairia? Pelo aperto no meu estomago e pela vontade de vomitar, acredito que pularia pela minha boca. Ah, não. Péssima maneira de causar uma boa impressão.

Aproximei finalmente do palco. Minhas mãos estavam derretendo. Pus as duas dentro dos meus bolsos e tentei sorrir. Devia tê-lo assustado, porque Batedor fez uma careta e abaixou-se para pegar o meu colar. Ele não sorria. Olhando em volta, notei que ninguém sorria. Talvez fosse um dia bem ordinário na vida deles, logo já estavam bem acostumados com tudo. A reação nada amistosa da plateia podia ser apenas graças ao marasmo, ao tédio. Ninguém se importava de verdade comigo. E eu nem queria que se importassem. Éramos indiferentes. Tampouco sabia o nome deles também.

Mas eles saberiam o meu.

A única Potência verdadeiramente feliz era a minha criadora. Ela estava sentada na primeira fileira e acenava para o palco onde eu me encontrava. Se eu fosse ela, acredito que também estaria orgulhoso. Eu era o seu primeiro filho a ganhar uma Missão, e a primeira Potência daquele século que era forte o suficiente para tomar aquele cargo e fazer uma viagem à Casa de Gaia, local onde somente os Humanos viviam. Algumas precisavam renascer dentro deles, tomar espaço de suas almas mundanas, para alcançarem o feito de caminhar naquele planeta tão curioso. Enquanto eu, belíssimo e astuto, viajaria detendo todos os meus poderes. Quer dizer, pelo menos alguns deles, porque ninguém queria que eu ficasse me exibindo lá. Segundo as Escrituras, o Primeiro do Século que fizesse algo contra os ditames e ameaçasse a Ordem Divina, perderia a própria existência.

– Você, filho de Ruína, eleito de Ordem, Primeiro do Século, nascido em Colina Sem Nome e conhecedor das Normas, está preparado para sua primeira ou última Missão? – Batedor indagou.

Eu pisquei e jurava que uma fina linha de lágrima havia surgido em meus olhos.

— Sim — ajoelhei de frente à Potência nada simpática. — Mas calma. Por que "última Missão"?

— Ninguém tem a certeza se você voltará vivo — Batedor sorriu de forma maliciosa. — Você sabe que os Humanos são um pouquinho estranhos, não sabe?

— Sim — repeti ainda sem levantar do assoalho muito brilhoso. Quem não era estranho? — Mas ninguém nunca morreu indo à Casa de Gaia, não é? — Olhei para minha criadora, que negava com a cabeça, embora sua feição meio pálida me dissesse o contrário.

— Sei lá. Se você morrer, continuará existindo, porque somos imortais.

— Então não há como morrer se somos imortais — tentei usar a lógica.

— Bom, você continuará existindo, mas não... Assim — Batedor apontou para meu corpo bem moldado. Sério, eu era muito bonito para uma Potência, e muitos também tinham inveja disso. — Não se preocupe, está bem? Você é o Primeiro do Século! Todos os Primeiros se dão bem nessas coisas. Eles não são os mais populares daqui?

Lembrei das estátuas espalhadas pelos distritos. Todos os Primeiros, de fato, eram imensuravelmente bem sucedidos até mesmo depois da aposentadoria. Famosos. Ricos. Poderosos. Charmosos. Lindos de doer. Eles haviam ficado bem e não havia nenhum boato dizendo o contrário. As outras Potências não ousavam brincar com mentiras, então a reputação deles estava intacta como deveria ser. E eu nunca ouvi sobre um Primeiro do Século falhando em uma missão. Eles tinham um histórico impecável, algo que era bastante raro, porque todos estavam sujeitos a erros.

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