Clareza e Sangue

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TRINTA E DOIS ANOS APÓS A APARIÇÃO

A noite estaria completamente silenciosa se não fosse os murmúrios e gemidos de dor dos guerreiros ota'wa. Hah'ru mal conseguia se lembrar da última vez que olhou o céu noturno e sentira algo diferente de sofrimento. A imensidão da escuridão era aterradora.

Todas as noites eram implacáveis, mortais.

Ele e seus irmãos estavam feridos da fuga penosa dos nebulosos. As criaturas nefastas pareciam incansáveis sob o véu da escuridão, mas de algum jeito eles conseguiram fugir.

Não havia um que não se arrastava cansado, dando um ar ainda mais moribundo na colina que atravessavam.

As baixas foram poucas, três homens e duas mulheres. Poucas? Hah'ru se repreendeu. Agora restavam apenas nove deles. Nove.

Os sacrifícios de seus companheiros não seriam em vão. Eles só precisavam chegar ao destino da profecia — as Montanhas Destino.

Debaixo da lama e o do sangue, os guerreiros vestiam túnicas tingidas com as cores de seu povo — uma mistura de vermelhos e dourados, simulando o alvorecer. As túnicas se estendiam até o joelho e não tinham mangas para poupá-los do calor.

As cores eram importantes, representavam um novo amanhã. Um novo destino. Eles precisavam se limpar, se lembrar o que elas significavam.

Há algum tempo, no entanto, a filosofia ota'wa da nova alvorada não era mais suficiente para fazer aqueles guerreiros continuarem. A profecia era.

Um dos guerreiros começou a murmurar algo, a expressão vazia, aturdida. Hah'ru precisou se aproximar para entender.

"Por que nos abandonou, Man'ah? O que fizemos" — Jah'vi sussurrava, a voz trêmula.

Hah'ru sabia no fundo que a deusa tinha pouca culpa no que acontecera ao seu povo, pelo menos era nisso que ele se segurava. A culpa era das trevas. Hah'ru se pegou olhando mais uma vez para os céus. A culpa era apenas das trevas.

"Pai? " Shi'ru chamou. "Eih'ra não está bem. "

Shi'ru estava em um estado tão deplorável quanto qualquer outro guerreiro. O rapaz estava no auge da idade, completara dezenove ciclos no último solstício — dezesseis mais novo que seu pai —, era tão grande forte quanto ele, talvez até mais. Ver o filho naquela situação doía em Hah'ru, ainda que se orgulhasse pelo tanto que o garoto crescera.

Não era a profecia que o fazia continuar.

Shi'ru apontou com a lança para onde estava Eih'ra. A guerreira era poucos ciclos mais nova que Hah'ru, fora a família dela quem o adotou logo depois da aparição.

Eih'ra era uma das mais habilidosas e experientes entre os sobreviventes, ainda que não carregasse em seu sangue as bênçãos de Man'ah.

Hah'ru aproximou-se e pôs a mão no ombro de sua irmã de criação. Ela apoiava-se com dificuldade sobre sua honra — a lança que todo guerreiro ota'wa carregava.

"Minha coxa, " Eih'ra gemeu e tombou sobre o joelho. Ela ergueu a túnica suja de lama, mostrando o ferimento — teias negras se estendiam do corte, agarrando toda a coxa e crescendo rapidamente para todas as direções. Ela o olhou com os olhos marejados. "Hah'ru?"

"Irmã? "

Hah'ru largou sua lança e aninhou Eih'ra em seus braços antes que ela tombasse. O olhar dela ficou desbotado, sua alma aos poucos abandonando aquele corpo. Seus olhos dourados miravam aquele maldito céu escuro.

Ela sequer verá o alvorecer, Hah'ru pensou com o coração apertado.

"Honrei nossa família, Hah'ru? " A voz trêmula foi seguida por lágrimas que desciam tortuosas como um raio em suas bochechas. Os olhos quase sem cor agora saltavam freneticamente, enxergando algo que apenas ela podia ver. "Eu tentei, irmão, " ela disse, agora mais melancólica. "Não pude salvá-lo. Eu tentei. Não havia comida. Mas eu fiz tudo o que pude, não fiz? "

Mana: A Queda Ota'waOnde histórias criam vida. Descubra agora