Após 30 minutos segurando fixamente ( com o olhar, também ) aquele bilhete, eu tentei encaixar várias teorias que explicassem a presença dele ali. Será que eu mesma havia escrito? Não... Impossível. Será que minha mãe escreveu e pôs em alguma mala minha? Improvável... Tantas suposições, que eu não estava entendendo de fato a gravidade da situação. Alguém havia me seguido, alguém sabe onde estou, alguém entrou no quarto do hotel, mexeu em minhas coisas e por fim deixou um bilhete. Eu senti medo. Mais medo ainda pela familiaridade que eu tive com a frase. Isso devia me confortar, mas não me confortou.
Depois que o choque do momento passou, me recompus. Conferi se algo havia sumido, mas nada sumiu até onde sei. Até que me deparei com a hora: eu já deveria estar dormindo. Mas não fui. Nada me parece mais assustador no momento que a possibilidade de algo falhar, e eu não sou boa com aquilo que sai do meu controle. Mesmo tomada de medos por esta noite confusa, há uma coisa a qual não tenho medo: de enfrentar. Seja qual for a situação. Ainda mais quando envolve o meu coração e junto com ele meus planos. Enquanto a isso, tudo é pouco, e nada basta. Chega de pensar!
Dormi. Acordei de forma como se nada tivesse acontecido. Admiro a minha resiliência, graças a ela meu humor não havia se abalado. Olhei pro bilhete na cômoda e sorri: pra quem vai viajar sozinha em uma busca incerta de amor, um bilhete é uma gentileza! Obrigada a quem o escreveu.
Depois de um banho longo para recarregar as energias, me dirigi ao café do hotel. Era pra ser meu último dia em Berlim, mas ao sentar na mesa uma linda senhora com vestimentas peculiares estava distribuindo um panfleto informando do musical que acontecera naquela noite no Friedrichstadt-Palast, um teatro cuja a beleza havia me ganhado. Aconteceria uma adaptação do musical da Disney : "101 Dalmatas". Eu amo musicais, mesmo sem nunca ter assistido. Como se pode amar algo que nunca viveu?. Será que vale a pena eu adiar minha partida ?. Não consigo ouvir sua opinião, aliás, eu já tenho a minha. Então sim, eu vou partir amanhã no primeiro voo da manhã, mas hoje eu ficarei.Estou com um vestido de crochê feito amavelmente por minha mãe. Eu prometi a ela que usaria no meu primeiro encontro, mas oras... hoje a noite eu vou sair comigo mesma, não seria essa uma boa ocasião? Aliás, tem sensação melhor que arrumar-se para si mesma? Eu estava me sentindo exuberante sem precisar da confirmação de ninguém e isso para mim bastara naquela noite. Na entrada do teatro, ao comprar meu ingresso eu avistei um casal de idosos. Como eu queria uma maneira de transferir para vocês o amor que eu senti com os olhos ao ver os sorrisos e a maneira como ele pegara na mão dela, como se os dois estivessem cantando em uma mesma sintonia uma música de Marisa Monte. Coisa linda de se ver!. Comprei então o ingresso e só de presenciar aquela cena minha noite havia valido a pena. Pus meus pés no teatro e não acreditei que aquilo era possível de se ver a olhos nus, era tão mágico que por um momento eu só desejara uma companhia ali para que me beliscasse e provasse a veracidade daquele momento. Começou o musical com Cruela Cruel, eu estava tão em êxtase que até Cruela me parecia uma criatura admirável de se ver naquela noite. Voltei para o hotel com uma sensação de solitude jamais sentida.
São 5:00am em Berlim, o sol esqueceu de nascer e a lua está então ocupando seu lugar, mas quase não a vejo pela quantidade de nuvens que cobrem o céu hoje. O clima está frio e com gosto de despedida. Tudo pronto, desci para o aeroporto. Como se fosse o destino, ou o acaso dele, o mesmo táxi que me pegou no aeroporto e me deixou no hotel, foi o mesmo que fez o caminho de volta. Ele olhou para mim como quem diz: "ela de novo?". E sim, eu falei com ele como se tivesse encontrado alguém íntimo, com as poucas palavras em alemão que sei, gritei: "Hallo!", ele não disse outra coisa se não o mesmo, em um tom um pouco menos animado. No caminho de volta para o início, eu carregava comigo boas lembranças de Berlim. Não sinto que foi um fracasso. Não foi fracasso pois eu me apaixonei por um casal apaixonado, não foi um fracasso pois eu me apaixonei pelo chão do teatro, não foi um fracasso pois... simplesmente não foi. Não será em toda esquina que o amor te dirá: "Oi!", ou como dizem aqui: "Hallo!", mas em toda esquina terá algo que você olhe com amor. Quando estou prestes a chegar no aeroporto, meu celular vibra. Meu coração palpita ao lembrar que pode ser minha mãe. Quando olho, leio. Releio. Não acredito. A mensagem me pergunta se eu recebi a carta. A bendita carta. Tento retornar para o número que me enviou a mensagem, mas logo escuto: número inexistente. Talvez eu devesse ter dado mais importância a carta, me amedrontei e todo meu bom humor do dia havia ido por água abaixo. Não me parecia mais um sinal de gentileza, e se tivesse tom de brincadeira me rendia gargalhadas, ao menos. Mas não. O carro em movimento e eu inerte. Quando cheguei, não havia me dado conta até que o motorista olhou novamente para mim com os mesmos olhos de estranhamento que me vira uns dias atrás. Me dei conta que havíamos chegado mas o medo de sair do carro falava mais alto. Quando algo fala mais alto que minhas vontades eu realmente me preocupo. Desci sozinha. Sozinha mesmo? ou havia mais alguém?. Entrei no aeroporto olhando para todos os lados como alguém que está na avenida mais movimentada da cidade. Minha cabeça está entre a certeza para onde vou e a incerteza de quem está indo comigo. Ah, a única coisa capaz de tirar meu pensamento das mensagens anônimas é a minha imaginação que já está no meu próximo destino. Aliás, para onde vou? Estou tão ansiosa quanto vocês...
*celular vibra*
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Todas as cartas que te escrevi.
RomanceEscrevi ao longo da minha adolescência 825 cartas para alguém que não conheço, mas sei que existe. Cartas sem destinatário. As enviei para diversos lugares do mundo pois sei que existe alguém, dentre bilhões, que seja, um dia, o destinatário esperad...