Consequências

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Despertei de umidade nas bochechas, escutando batidas na porta da frente. Só poderia ser Jack. Ao fundo podia-se ouvir o barulho do apresentador de TV informando alguma coisa que eu não conseguia discernir no momento, estavam distorcidas e pouco atraentes para os meus ouvidos sequer cogitarem em se dar ao luxo de prestarem atenção.

Quando toquei levemente nas maçãs do rosto senti as trilhas que as lágrimas haviam feito ao longo do sonho, limpei-as.

(TOC TOC)

Já vai! — exclamei alto, embriagada e aborrecida pelo sono, retirando-me do sofá.

Dei uma olhada no relógio pendurado na parede.

— Ei, idiota! Da próxima vez que chegar tarde desse jeito eu irei executar uma ditadura aqui, prometo.

— Se eu for recebido com tanto carinho assim talvez nem haja “próxima vez”. — respondeu Jack, num pingo de sarcasmo.

Ele está estranho, pensei. Sua resposta estava carregada de cansaço e arrastava-se como se o ato de falar instigasse exaustão.

Destravei as trancas e girei a chave. Minhas mãos não se moviam comumente como de praxe, igual a qualquer pessoa não habituada a se levantar naquele horário.

— Você passou? — perguntei contendo o ar de ansiedade.

Eu conhecia muito bem aquele idiota para saber quando estava mentindo ou não. Até mesmo sei quando guarda algo de mim. Deixa eu ver... aquela mão desajeitada na ponta do queixo, o fantasma de um sorriso travesso e brincalhão de costume... é... ele está escondendo.

— Hum... ainda não sei... — hesitava revelar.

— Desembucha! —inclinei-me para beliscar sua barriga, todavia o mesmo imediatamente impediu, tão ágil que nem houve tempo de reagir.

Ele segurava a minha mão gentilmente e parecia estar bem, entretanto, pode ter sido apenas por um segundo mas a sombra de dor e temor transpassou o seu rosto.

— Eu passei. — estampou um largo sorriso abrindo os braços.

— Que bom! — quase gritei, entusiasmada, abraçando-lhe forte. — Eu sabia que ia passar. — afirmei firmemente.

Recostei seu rosto entre os meus seios cobertos por uma blusa preta ilustrada com um Batman dando um “joinha”. Esses são os meus pijamas, creio que alguém entre nós deve ter passado essa despreocupação relacionada à aparência para o outro.

— Shiro... — sua voz saía abafada. — ... está me sufocando.

— Meu policial anão! — baguncei seus cabelos, dos quais estavam suados.

— Vai se foder, eu não sou baixo! — reclamou, e eu notei agora visualizando de perto o quanto demonstrava cansaço; o brilho de suas íris estava apaziguado, camuflado numa cortina de profundidade. Já a expressão de seu rosto era tensa, se esforçando para manter a compostura.

— Jack... você...

— Eu — prosseguiu afastando sua cabeça. — estou realmente assustado com sua aparência. É melhor entrarmos, vai que alguém passe e saía correndo. Não quero que meu primeiro trabalho como policial seja caçar um fantasma.

— Vai se foder! — retruquei controlando o riso. — Está pior que eu! Já mandaram colocar uma cadeirinha pra você na viatura? — brinquei, sorrindo de lado.

Ele desatou a rir desvencilhando-se dos meus braços. Então quando tentou dar o primeiro passo para dentro de casa sua perna fraquejou e se não fosse por meus instintos o mesmo teria desabado na soleira da casa.

— Jack! — gritei alarmada, segurando-o com dificuldade.

O garoto estava praticamente se escorando em mim. As pernas dele tremiam e as puxadas de ar eram ligeiras; toda a sua estrutura parecia estar sofrendo de consequências parecidas à tentativa de uma pessoa normal participar de uma maratona.

— Eu... estou bem.

(Que merda!)


— Não, você obviamente não está bem. Agora cale a boca e deixe-me te pôr no sofá.

— Carinhosa desse jeito... — sorria ao falar.

Esse idiota... sabe que não pode exigir tanto de si dessa forma, e mesmo assim... mesmo sabendo... por que ele é assim? Por que se importa tão pouco com a própria vida?

— Eu deveria te dar uns tapas. — encolhia os lábios, deitando-o no sofá. — Jack, você sabe muito bem de seus limites.

Retiro sua jaqueta revelando sua camisa branca ensopada, grudando em certos locais de seu torso definido.

— Eu sei, mas... eu precisava tentar. — sua fala era grave e pesada, ele de fato sentia necessidade nisso.

— Seu corpo ainda não está pronto para-

— Tem... algo para comer? — interrompeu, ofegante. — Estou morrendo de fome!

— É... — estava nervosa, sem saber o que fazer primeiro: cuidar dele ou de sua fome. Era muita preocupação para uma irmã só. — Vou pegar os hambúrgueres.

Apanhei os alimentos na geladeira e depositei dentro do micro-ondas, e durante o aquecimento tratei de aprontar uma garrafa d’água e copo para o ruivo, entregando-o de início. Posteriormente ao soar do eletrônico fui pegar os hambúrgueres, levando num prato pequeno, nele continha cerca de 7 dos alimentos que ele tanto gostava.

— Obrigado! — agradeceu já com uma aparência melhor, entretanto ainda exaurido.

Ao analisar a garrafa de dois litros, que já estava pela metade, seria normal presumir que ele consumiria aquele lanche avidamente, porém é um termo um tanto quanto errôneo a ser usado, o certo seria afirmar que ele atacou os hambúrgueres loucamente. Parecia um esfomeado que jamais encontrou tamanha fartura.

Por fim, o garoto suspirou de alívio após ter saciado sua fome.

— Você não deveria se esforçar tanto. — acrescentei numa junção de firmeza e gentileza. Na realidade estava imensamente preocupada com o mesmo.

Tudo tem seu preço; a humanidade não saiu das cavernas e passou a ser civilizada do nada, a evolução ocorreu lentamente ao passar dos séculos; não é diferente com os poderes. Eles trazem consigo suas consequências pois em suma possuímos um corpo aparentemente comum, alguns com algumas mudanças mas em sua maioria comuns. Jack, apesar de ter uma peculiaridade forte, é uma faca de dois gumes, aproveitada e descoberta tarde demais, quando veio morar conosco, e foi treinado por nosso pai.

— Eu estou bem, Shiro. — rebateu abrindo os braços — Aliás, os hambúrgueres estavam ótimos. Deus realmente caprichou em algumas criações.— alargou um sorriso descontraído.

Ele ainda estava suado mas sua respiração havia normalizado.

Depois de provar uma vez a comida passou a se referir a ela como “alimento dos Deuses”. Ele era bem dramático quando queria.

— Não mude de assunto. — retornei para o tema. — Se isso se repetisse no meio de uma batalha-

— Mas não ocorreu. Ocorreu? — indagou erguendo as sobrancelhas.

Sentei na ponta do sofá.

— Mas poderia. Não poderia? — imitei o seu gesto.

E quem se importaria? — rebateu num murmúrio inflado de frieza e solidão, lembrando-me do menininho de antes, fitando o vazio, e isso foi o bastante para sufocar meu peito.

Somos perseguidos pelas sequelas do passado, pelos vestígios e pegadas de dores há muito sofridas. Podemos superar mas isso requer tempo, e nem sempre é possível sair totalmente impune. Muitas vezes carregamos fardos muito pesados que refletem em cicatrizes de nossa essência, nos moldando sem parar.

— Quando eu perdi minha mãe eu me senti sozinha e desamparada. Eu pensava: "Ninguém consegue me entender. Então por que eu preciso falar ou desabafar?". — revelou, relutante. — E as visitas não paravam de chegar, pessoas e mais pessoas que eu nem conheciam vinham ter comigo querendo amaciar o próprio ego ao saber que por muito houvessem abandonado ela, haviam tranquilizado sua filha. Como se isso fosse trazer ela de volta! — debochei amargamente. — Nosso pai passou dias inteiros trancado no quarto só saindo para fazer o café-da-manhá, almoço e janta. Talvez ele não quisesse revelar o seu lado mais "frágil" pra mim. Talvez ele quisesse passar a figura paterna de um homem inabalável. — olhava para o chão, contando tristemente, tendo memórias tristes porém felizes e repletas de saudade e amor, porque as relações são assim: com idas e vindas e oscilações, até que tudo acaba deixando um gosto amargo e um vazio no coração. —  Isso de "a dor nos fortalece" é tudo besteira, uma baboseira criada pela maioria. Infelizmente é impossível pensar dessa forma quando as pessoas que você mais ama estão te deixando pouco a pouco. Ser forte, resiliente e seguir em frente... Isso tudo é uma droga, Jack. — soltou um suspiro instável. — Fingimos aceitar conceitos básicos como a vida e a morte mas nunca estaremos prontos para isso. É sempre doloroso e injusto. Algo que é sempre mais bonito em livros e frases motivacionais mas na vida real não se aplica muito bem.

— Então está dizendo que só gosta de mim por sermos parecidos? — indagou perdido, desconhecendo onde eu queria chegar. — Porque ambos perdemos entes queridos?

— Não. Mas quando você apareceu aqui tudo mudou. "Finalmente consegui um irmãozinho", eu disse. Esse sempre foi o meu sonho. Eu perguntava para os dois toda noite se eu teria um irmãozinho um dia. — comentei, sorrindo de leve. — Eu senti que poderia ter uma família de novo e que as coisas poderiam voltar a ser como eram antes. Eu estava errada, nada volta a ser como era antigamente, porém nem tudo que é diferente é necessariamente ruim. — desgrenhei seus cabelos. — Eu te amo e gosto de ti porque é uma pessoa, sobretudo. Com defeitos e qualidades. Erra, tropeça, cai e se levanta. Tem sonhos e medo de não conseguir alcançá-los. E por mais que seja forte sempre irá duvidar disso, pois tem um desejo constante de se tornar uma pessoa melhor.

Beijo sua testa delicadamente, notando sua pele ruborizar repentinamente.

— Eu sei que é besteira mas... eu só não gosto de vê-lo se machucando. — suspirei preocupada. — Falando nisso... Está melhor?

— Você também é bem exagerada, não é? — sorriu de lado. — Apenas estou levemente cansado. Não é nada demais. E fora que... esse é o meu sonho...

Contra a sua teimosia nada iria adiantar, nem mesmo os riscos de usar sua peculiaridade além dos atuais limites. E como ele mesmo falou: é o seu sonho.

— Está bem... só... — balançava a cabeça, soltando um longo suspiro. — ... só me promete que vai tomar cuidado.

— Eu prometo. — falou, carinhosamente. — Sempre estarei aqui para te aborrecer.

— Sério?

— É claro! — exclamou de forma carismática. — Esse é um dos meus hobbies favoritos.

Soltei uma leve risada enxugando o canto dos olhos com os braços desnudos.

— Se não cumprir a sua promessa eu juro que te tiro do caixão e lhe revivo somente para eu mesma ter o prazer de te matar.

— Dizendo essas palavras nessa aparência... Não tem pena do seu pobre irmão? Quer que ele tenha pesadelos?

— Vá pro inferno! — disse entre risadas.

URGENTE: UM GRUPO CRIMINOSO É VISTO EM MIDNIGHT CITY À NOITE-

Ele repentinamente se focou no noticiário.

OS WATCHERS, COMO SÃO CHAMADOS-

— “Watchers”? — perguntou, esperando que eu soubesse de algo. Lançou uma olhadela de soslaio para mim.

— Não sei, é a primeira vez que escuto esse nome.

USAM MÁSCARAS E CAUSAM MEDO NA POPULAÇÃO.

Que ridículo, pensei. O mundo está de fato se tornando um circo se continuar nesse ritmo.

Que foda. — Jack afirmou, parecendo razoavelmente admirado.

— É sério que acha isso legal?

— As máscaras sim.

— Não! Elas são ridículas. — rebati consternada.

— Sabe, para alguém que gosta tanto assim de HQ’s você tem pouca inspiração. — o desgraçado disse fingindo pena, escondendo seu semblante brincalhão.

— Aham, sei. — estreitei os olhos.

POR ISSO É RECOMENDADO QUE EVITEM FICAR NA RUA MUITO TARDE, A POLÍCIA ADVERTE.

— Justamente por isso elas são mais usadas nas HQ’s e não na realidade. — ressaltei. — Para um garoto que diz não querer ser um super-herói você tem gostos estranhos

— Não são “gostos estranhos”, é apenas por achar legal mesmo. — suspirou exibindo seu sorriso. — Francamente, você é muito apegada a estereótipos, por isso fica dizendo que sou um motoqueiro por causa da minha jaqueta.

— É porque parece mesmo. — dei de ombros.

— Ah, sério? Já viu algum motoqueiro bonito?

— Não, por isso mesmo. — estampei uma expressão zombeteira.

— Vai se foder.

— Também te amo.

Jack Morgan - A AscensãoOnde histórias criam vida. Descubra agora