Uma fileira de colunas de pedra que sustentavam o andar superior da mansão desenhavam um imponente caminho em linha reta, ladeado por um vistoso jardim interior onde jazia uma pequena fonte sem água, tomada pelo musgo e tão mórbida quanto uma lápide. O ambiente era regido pelo silêncio enquanto um pálido luar transpunha a clarabóia em forma de elipse, cerca de dez metros acima do jardim, pintando aquele ambiente com seus tons gélidos de cinza e azul.
Apenas duas lamparinas vitorianas podiam ser vistas tremeluzindo nas laterais de uma grande porta de madeira escura, ao fim do caminho entre as colunas e a grossa parede daquela mansão.
Estava tudo quieto como em uma pintura a óleo quando irrompeu por aquele cenário uma figura negra, caminhando a passos rápidos porém silenciosos, tendo seu corpo inteiro coberto por um manto da cor do céu pouco antes da aurora, que se arrastava pelo chão com igual leveza e mutismo.
Rumava decidida em direção à porta com as lamparinas. O capuz se movia freneticamente com o caminhar daquela sombra e o deslocamento do ar, mas mesmo assim não lhe saía do lugar para que revelasse seu rosto. Os braços apertavam contra o peito um objeto cinzento de forma retangular. A cabeça não virara para lado algum por todo o trajeto. Sabia onde estava indo e tinha urgência.
Ao alcançar a porta uma breve hesitação, enquanto uma mão pálida saia de dentro do comprido manto para agarrar a maçaneta. Girando com o cuidado de quem abre uma caixa de porcelana, a misteriosa figura empurra a porta devagar e adentra a escuridão daquele novo ambiente.
O som da porta sendo fechada atrás de si ecoou pelo corredor que se estendia a sua frente. Um tremor súbito pareceu ter percorrido o ser sob o manto. Uma vela solitária estava derretendo sobre si mesma junto à parede, onde o pequeno corredor terminava em uma sala à direita. Aquela sala seria uma espécie de sauna privada se estivesse em uma mansão comum.
Quando finalmente adentrou o local de destino, caminhou com ainda mais cautela em direção ao que parecia ser uma pequena piscina que se confundia com o negro do piso e naquele breu, não fosse pela silhueta branca que emergia lá de dentro de costas para a entrada, com dois finos braços apoiados na borda e a cabeça encostada para trás sobre os cabelos compridos. Uma mulher.
Não esboçava sequer um movimento de respiração que fosse, em resposta à figura no manto negro de pé atrás de si. Esta, por sua vez, tinha certeza de que já tinha sua presença anunciada.
Em toda aquela sala haviam um total de mais três velas, já quase completamente derretidas, que lançavam uma luz muito fraca sobre a suposta piscina no centro. Uma delas tornava possível identificar a cor dos cabelos da mulher, pois refletia laranja em seu ruivo intenso.
- Minha senhora? - um sussurro também feminino porém amedrontado escapou por sob o capuz, enquanto a figura se curvava em uma reverência. O objeto em seus braços era um computador portátil.
Uma espécie de rosnado gutural e ameaçador ecoou pelas paredes daquela sala como se uma fera gigantesca estivesse a ser cutucada com um graveto. A mulher sob o manto estremeceu e por um momento pareceu vacilar sobre seu joelho dobrado. Tinha ido longe demais para se entregar ao medo agora. Ela trazia uma informação importante e que não podia esperar pelo fim do momento íntimo daquela mulher que se banhava na escuridão.
- Encontraram outro fragmento do grimório - balbuciou tentando controlar o coração palpitante que atrapalhava sua respiração. Cerca de três segundos de silêncio completo até que um som suave e líquido indicou que a mulher estava saindo de dentro de sua piscina, banheira, seja lá o que fosse aquilo.
Usando a visão periférica sem ousar desfazer-se da posição de vênia, a mulher sob o manto observou o esguio, porém elegante, corpo nu da outra que se levantava de costas para ela.
Envolvendo as delicadas curvas daquele corpo, a escorrer desde a altura de suas costas, estava uma camada de algo mais espesso do que água.O tom avermelhado daquele líquido acendeu todos os sinais possíveis de pânico dentro da mulher que envergava o manto. Seu grito de pavor subiu por suas entranhas mas ficou trancado na garganta com todas as forças que a jovem detinha em sua concentração.
Apesar de nada em seu rito de iniciação à ordem a tivesse preparado para aquela visão, ela já tinha aprendido o suficiente para manter-se compenetrada no que estivesse fazendo, até que fosse liberada a descansar.
Abigail voltou seu olhar por sobre o ombro. Globos negros e íris vermelhas. Seus lábios e queixo também estavam manchados pelo líquido da piscina - Deixe ao lado da vela e saia - disse numa voz musical, porém afiada.
Afastando-se ainda na postura de vénia, a mulher no manto obedeceu e só então virou-se para sair, em absoluto silêncio.
Um largo instante se passou até que o eco da porta se fechando fosse completamente dissipado dentro daquele ambiente.
Limpando-se nas costas da mão, Abigail apanhou do chão o laptop e o abriu, constatando que havia uma chamada de vídeo posta em espera. Ajeitou o ângulo da câmera para que não lhe focasse a nudez do tronco e piscando suavemente os olhos retomou sua coloração e aspeto humanos.
Respondeu à chamada.
Do outro lado estava um homem de feições orientais contornadas por um cabelo castanho desarrumado e uma penugem rala no queixo. Saudou sua interlocutora de forma nervosa e com máximo respeito, praticamente submissão.
- Temos outra página do manuscrito senhora. Enviei-lhe as fotos preliminares como requisitado e estamos transportando a peça para um local seguro.
- E o guardião?
- Senhora? Ah, não havia ninguém no local além da nossa equipe.
Os olhos de Abigail percorreram a imagem ao redor da figura do homem, avaliava o cenário rapidamente. Sentindo uma repentina onda de medo o homem tremeu-se e olhou por sobre os dois ombros.
Gritos distantes começaram a preencher o áudio da chamada. Abigail cobriu a webcam com uma grossa camada do sangue que tinha nas mãos e levantou-se:
- Espero bem que essas fotos cheguem.
A chamada encerrou-se abruptamente alguns segundos depois.
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O Círculo de Lilith - Coleção Flertes Perigosos
HorrorOs caminhos de quatro garotas se cruzam com as armações nebulosas de uma seita demoníaca e cada uma delas se vê em um nível diferente de poder, segredo, e ameaça. Flertar com o sobrenatural nunca pareceu tão excitante para elas, mas não quer dizer q...